Aventura na selva amazônica (I)

O jornalista Arnoldo Anater e seu sobrinho Márcio Anater aventuraram-se numa viagem pela selva amazônica e se deram mal. Passaram oito dias dentro de um jipe em meio a atoleiros sem fim, acuados por onças, tomando água de valetas e de igarapés, alimentando-se de frutos silvestres e de carnes de bichos da mata. Dormiam em choupanas abandonadas e em acampamento à beira da estrada.

Foram salvos por uma verdadeira operação de resgate envolvendo caminhões e uma dezena de homens que os trouxeram à civilização. Tudo aconteceu porque a rodovia BR 319 – Manaus- Porto Velho, com mais de 1.200 quilômetros, que foi a esperança de milhares de agricultores, fazendeiros, sitiantes, de comerciantes e prestadores de serviços, que instalados às suas margens viveram a ilusão de colonizar e integrar a Amazônia, hoje é um pesadelo, destruída, morta e completamente intransitável. Os poucos moradores que ainda teimam em viver na região estão em completo abandono, sem comunicação, transporte, longe da educação e da saúde pública, iludidos com promessas e sonhando.

A estrada passava a ser uma ferida, com buracos e muita lama.

Arnoldo Anater conta como tudo aconteceu. O projeto para conhecer a maior reserva florestal do mundo começou quando um jipe Engesa foi posto em um barco em Tabatinga, onde o Brasil faz fronteira com a Colômbia e o Peru, a 1.700 quilômetros de Manaus. Na capital amazonense o jipe foi preparado e equipado, com pneus, gasolina, água e comida. Às 10h45 do dia 20 de fevereiro de 2006 partimos. O período de chuvas na região norte do País estava em pleno vigor. Deixamos o Hotel Canaã, no bairro São Pedro, com o propósito de fazermos 5 mil quilômetros até encostar na fronteira do Brasil com a Argentina, na cidade de Dionísio Cerqueira, Santa Catarina, divisa com o Paraná. Rumamos para a BR 319 já que o plano era Manaus-Porto Velho, Vilhena, Cuiabá, Campo Grande, entrando no Paraná por Querência do Norte ou Guaíra, com opção para Curitiba ou diretamente ao oeste catarinense.

Entusiasmados com a grande aventura, logo em seguida, a sorte nos advertiu que não estaria ao nosso lado. Às 11h10, vinte e cinco minutos após a partida, os frentistas de um posto nos informaram que o jipe tinha excesso de óleo lubrificante, que devia ser tirado. Havia também problemas com a gasolina. Veículo revisado e abastecido, pneus em ordem, seguimos. Atravessamos a cidade e alcançamos a BR 319 no Distrito Industrial de Manaus, também conhecido por ?Bola da Suframa?. Às 13 horas estávamos na balsa para a atravessia do Rio Negro. Depois de uma hora de espera e uma hora e 30 minutos de travessia descemos em Carreiro da Várzea e às 16 horas retomamos a viagem pela 319, com asfalto em relativo bom estado.

Jipe começa dar maus sinais

Na travesia do Rio Negro e Solimões.

O jipe desenvolvia bem, veloz e confortável. Às margens da estrada fazendas de gado nelore, mas logo em frente encontramos trabalhadores tapando buracos e uma cratera dividia a pista. Pior é que 35 minutos depois o veículo começou a ferver. De 10 em l0 minutos tínhamos que parar para repor a água, por sinal muito abundante em toda a região. Eram 17h45 quando, em Castanho, pouco mais de 100 km de Manaus, encostamos na oficina de ?seu? Jorge para conserto do radiador. Duas horas após o carro estava liberado e às 20h15 nos hospedamos na Pousada Coqueiro. Antes do jantar, abastecemos o jipe, deixando tudo pronto para a partida cedo do dia seguinte.

Apenas duas referências

Castanho é uma cidade de 15 mil habitantes, com alguma estrutura, pólo comercial da pequena produção agrícola que sai da região. Cidade mais próxima de Manaus e a mais de 1.100 km de Porto Velho, é ponto de referência para alguma emergência para quem usa a BR 319. Humaitá, 200 km de Porto Velho, forma com Castanho as duas cidades que ainda dispõem de algum recurso ao longo da estrada. O resto é deserto, abandono. Não há civilização. A própria rodovia está se transformando em uma trilha no meio da selva, isolando a todos.

Correr risco está no sangue

Tio e sobrinho são descedentes de italianos. Contam que o italiano traz no sangue o instinto aventureiro. Delegado de Polícia Federal, para Márcio, 41 anos, a aventura é o ?tempero da vida?. Foi ele quem ?bolou o passeio? pela selva amazônica em rodovias abandonadas, podendo ser devorado por onças e atacado por cobras, animais abundantes na região. Logo após sua aprovação em concurso público, escolheu a delegacia de Tabatinga, a mais isolada do Amazonas e do Brasil, fronteira com o Peru e a Colômbia. Durante mais de dois anos, lá combateu o crime organizado, o contrabando, o tráfico de drogas e a exploração sexual de menores.

Removido para a delegacia de Dionísio Cerqueira, Santa Catarina, fronteira com a Argentina, Márcio justifica a aventura dizendo que sua vontade é conhecer o País. Para ele o último sertão que existe no Brasil é a região amazônica. ?Acho que quem está na Amazônia tem que conhecê-la antes de voltar para o Brasil civilizado. Vou voltar fazendo uma aventura, conhecendo uma Amazônia que é selva ainda. Estamos em plena selva, embora tenha estrada asfaltada, tenha BR, mas ainda é um sertão. Estamos andando a maior parte do tempo em estrada de barro.? Tabatinga não tem acesso por rodovias e por isso Márcio revelou que o seu desejo era achar uma estrada, já que ?fiquei quase três anos num lugar que não tem estrada?.

Antes de aventurar-se pela selva brasileira, Márcio foi conhecer a selva amazônica do Equador e do Peru, acessando-a pelo Rio Napo, fazendo a mesma rota de Francisco de Orellana, o descobridor da foz do Rio Amazonas. Chateado, contou que entrou numa ?fria? porque o site do governo do Equador informava que El Coca (início da aventura) tinha ligação com Iquitos, no Peru, ?só que não existe nada disso?. Iquitos fica a 1.500 km Rio Napo abaixo. Ninguém nem lembrava quando foi que um brasileiro passou por lá. Márcio deixou El Coca para chegar a Nueva Rocaforte, fronteira com o Peru. Lá ele encontrou uma alemã que há três meses esperava sair de lá, mas, para isso, precisava dividir o preço do aluguel de uma canoa (que é muito alto) para chegar ao Peru. Acordo feito, canoa alugada, começava a parte mais interessante da viagem. Primeiro até Pantonja (nome de um cabo elevado à condição e herói peruano, por expulsar os equatorianos da antiga ?Rocaforte?. Dali até Santa Clotilde, com as tradicionais paradas para inspeção pelo exército peruano. Em seguida veio Manzana, donde se atravessa por uma pequena faixa de terra até o Rio Amazonas, de onde seguiu para Iquitos. Depois de mais alguns dias na capital da Amazônia peruana, estava de volta a Tabatinga. Não deixa de tecer comentários quanto à hospitalidade dos peruanos, a quem reputa a condição de verdadeiros ocupantes da Amazônia. Voltou orgulhoso pela admiração que equatorianos e peruanos têm pelo Brasil.

Um jipe de subir nas paredes

Para vencermos os 5 mil quilômetros previstos, contávamos com um jipe Engesa, fase I, ano 88, que Márcio diz ser capaz de subir paredes e andar em buracos e atoleiros sem qualquer problema. Tal a sua robustez. Desenvolvido pelo Instituto Militar de Engenharia para servir ao Exército, é o veículo ideal para qualquer estrada, porque seu segredo está na caixa de transferência. Com motor de Opala 2.5 e 94 cavalos, pneus militares 7.50 x 16, pensávamos que não haveria problemas para atravessarmos o coração da Amazônia. No começo, no imenso barral usávamos a tração, que puxa nas quatro rodas ao mesmo tempo e íamos vencendo o mar de lodo que era a estrada. Equipado com machado, enxadão, farol, macaco, guincho, gasolina de reserva e quatro pneus de estepes, não esperávamos encontrar um inimigo imbatível: o barro argiloso do solo da Amazônia, conhecido como tabatinga. Ele cola embaixo do veículo e rompe todas as peças e assim não há carro que agüente. E foi por isso que o Engesa, que saiu de Manaus com 38.065 quilômetros, nos deixou no km 347 da BR 319. Praticamente 1/3 do percurso Manaus-Porto Velho. Márcio calcula que trocou marcha em média a cada 5 minutos. Isto fez romper o cabo da embreagem. O tabatinga petrificou nos tambores e estilhaçou as lonas de uma das rodas. O cabo do guincho enrolou na roda dianteira e rompeu o cano do fluido de freios. A gasolina adulterada liquidou a aventura, quando ?inchou? as peças de borracha do carburador. Márcio diz que o maior atoleiro que encontrou na Serra do Mar foi um passeio comparado com o menor que encontrou na BR 319 (na Serra do Mar ele usava um Lada Niva).

O aventureiro é um corajoso

O jornalista Arnoldo e
seu sobrinho Márcio Anater.

Eu, com 68 anos, catarinense de Concórdia, tio de Márcio, entrei nessa aventura por ?oferecido?, para fazer companhia. Nunca tinha empreendido nenhuma, mas também nunca me faltou coragem, porque pelo que parece, todo o aventureiro é um corajoso. A única aventura que considero ter vivido foi quando penetrei a mata em Registro, interior de São Paulo, para uma reportagem sobre o combate à guerrilha rural pelo o II Exército de São Paulo, isto em 1972. Os militares haviam interditado a BR 116 para caçar os comunistas que tinham instalado um campo de treinamento na região. A imprensa estava proibida de se aproximar da área e quando a reportagem do então Diário do Paraná chegou, foi recolhida no presídio regional de Registro, lá permanecendo por quatro dias. Isolado, em Registro passei a feijão e couve, mas no Amazonas a situação foi muito pior. (AA)

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