Artistas criam rede para discutir o teatro no Brasil

Entre os muitos problemas com os quais nos deparamos no dia-a-dia, a ausência de tempo para pensar sobre o que se faz talvez seja o mais devastador para as relações humanas, e em sociedade. Tragados pelas inúmeras tarefas do cotidiano tendemos a andar, e pensar, em círculos. Ano passado, 53 grupos teatrais e entidades de nove Estados brasileiros reuniram-se no Grupo Galpão, em Belo Horizonte, para romper esse círculo.

Organizaram uma intensa programação, envolvendo palestras, debates e, sobretudo, troca de experiências sobre temas de fundamental importância para núcleos de criação teatral – por exemplo, aquisição e manutenção de espaços próprios, que possibilitem trabalho contínuo e vínculo com a comunidade local. Ao fim, lançaram um manifesto e fundaram a Rede Brasileira de Espaços de Criação, Compartilhamento e Pesquisa Teatral – Redemoinho.

Nesta semana, esses grupos voltaram a se encontrar no 2.º Encontro Nacional da Redemoinho, novamente no Grupo Galpão em Belo Horizonte. Desta vez eram 71, sendo que 36 deles já como efetivos integrantes da rede – o que significa divisão igualitária dos custos de manutenção (pagamento de duas semestralidades de R$ 210) e, sobretudo, compromisso real com a manutenção da vitalidade dessa ‘malha de articulação’.

Só para citar alguns, entre os efetivos integrantes estão o ACT, de Curitiba; a Cia. Clara, de BH; o Imbuaça, de Sergipe; o Teatro da Vertigem, de São Paulo; o Teatro do Pequeno Gesto, do Rio, e o Ói Nóis aqui Traveiz, de Porto Alegre.

Novamente a agenda foi árdua, as discussões foram acaloradas, o entusiasmo foi intenso e o encerramento, emocionado. A primeira manhã foi dedicada a um balanço anual. Entre as conquistas, a abertura do site www.redemoinho.org – com custos de criação e manutenção pagos pelos integrantes, ação fundamental para a facilitar a troca de informações e a articulação de estratégias de ação ao longo do ano.

Por exemplo, ao fim desse novo encontro uma comissão de sete artistas de diferentes grupos, entre eles Luiz Fernando Lobo da Cia. Ensaio Aberto (RJ) e Tiche Viana, da Grupo Barracão de Campinas, ficou encarregada da tarefa de encomendar textos a intelectuais sobre temas de interesse dos grupos para ‘alimentar’ as discussões na rede.

Há algo de muito interessante, e avançado, nessa forma de organização. Ao contrário de entidades, associações, sindicatos, a Redemoinho não tem sede ou representação. Ninguém fala pela Redemoinho. Seus integrantes podem, por exemplo, realizar ações culturais em seus Estados e dizer que ‘pertencem’ à rede, mas ninguém pode assinar um documento ou dar declaração pela Redemoinho. Não há hierarquias, presidente, representação.

Só a reunião anual do coletivo pode criar um documento, aprovado por todos. O principal objetivo da rede é articulação. Mas isso não quer dizer caos. Tanto que os critérios para as novas adesões causaram algumas das discussões mais acaloradas. Ao fim, ficou algo como ‘singularidades’ unidas por ‘princípios’ comuns, o que pressupõe a não cristalização em dogmas ou sectarismos, uma disposição para permanente ‘construção’ da Redemoinho.

Nos três dias do 2.º Encontro Nacional, a programação foi dividida em palestras (provocadoras de reflexão), debates e depoimentos. Os participantes dividiram-se ainda em três grandes grupos de estudo. Assim reunidos, reservaram algumas horas de cada dia para discutir temas distintos girando em torno de modos de produção, espaços de criação e políticas culturais.

Ao fim, as sínteses do que foi discutido eram expostas a todos e debatidas. Na votação final foram estabelecidas tarefas e diretrizes para o próximo ano. "Viemos aqui buscar mais trabalho; somos loucos", brincou Tiche Viana.

Ao longo do exaustivo encontro, alguns depoimentos arrancaram risos, por exemplo, o de Hamilton Leite, representante do Movimento de Grupos de Investigação Cênica – que reúne grupos de teatro de rua gaúchos -, ao falar da elaboração de anteprojeto de lei de fomento ao teatro, já em tramitação no legislativo local, criada nos moldes do Programa Municipal de Fomento ao Teatro, da cidade de São Paulo, implementado a partir de lei nascida da articulação de artistas em torno do Movimento Arte contra a Barbárie.

"Foi só inspiração nós não imitamos ninguém", disse Hamilton. "Nosso projeto de lei tem características próprias e nosso movimento, por ser gaúcho, se chama Arte contra a Barbaridade."

Em sua palestra, Antonio Grassi, presidente da Funarte, defendeu políticas públicas para grupos de pesquisa e companhias teatrais e ainda fez ataque feroz às leis de incentivo – "Eram para ser apenas medidas emergenciais depois do desmonte do governo Collor." Chamou atenção para o montante da renúncia fiscal para a cultura, R$ 570 milhões. "O orçamento do MinC não chegou à metade desse valor."

Falou ainda sobre a importância da aprovação da emenda de R$ 100 milhões no orçamento federal da cultura para execução de programas como o Prêmio Miriam Muniz para o teatro e o Prêmio Klauss Viana para a Dança. E defendeu ainda o binômio cultura-educação. "Hoje o Brasil possui 56 milhões de estudantes na rede pública e 3 milhões de professores. No entanto, o livro no Brasil custa caro porque as tiragens são de 3 mil!"

Em outro momento, a professora Iná Camargo já começou sua palestra provocando. "O teatro esteve na vanguarda da barbárie. A chamada Commedia Dell’Arte foi a primeira atividade teatral a ter especialização de trabalho, pagar salários e, portanto, a extrair mais-valia, acumular lucro, mercantilizar as relações, ou seja, a primeira a instalar a barbárie."

Por outro lado, para falar de "novos paradigmas", o filósofo Luiz Fuganti citando Nietzsche e Artaud, entre outros pensadores, instigou a platéia com seu estimulante discurso sobre a ‘potência’ de transformação existente no acontecimento, na vida, em cada ser humano. Falou ainda sobre a importância do silêncio.

Sua palestra foi marcante e seu discurso acabou sendo retomado pela diretora Tiche Viana no encerramento do encontro, na noite de quarta-feira: "Temos de acreditar na potência desse encontro, desse acontecimento." O próximo encontro do Redemoinho será em Campinas. No ano seguinte, em 2007, será em Porto Alegre.

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