Arrigo, o Stravinski da vanguarda

São Paulo – Da mesma forma que o compositor russo Stravinski revolucionou a música erudita no começo do século passado com A Sagração da Primavera, ao explorar novas possibilidades rítmicas e fundir seu conhecimento com o da cultura popular, o londrinense Arrigo Barnabé – que se apresenta com a banda Suave Veneno no final de semana, na festa dos 450 anos de São Paulo – indica ser a pluralidade musical o caminho que as novas gerações devem seguir.

Em seu melhor trabalho, a Missa in-Memorian Arthur Bispo do Rosário, gravada para acompanhar a mostra dedicada ao artista plástico no Centro Cultural Banco do Brasil, no ano passado, Arrigo faz uma síntese da música litúrgica no Brasil e no mundo, de Bach a György Ligeti, passando pelo padre José Maurício e Messiaen.

O desafio de compor uma missa para um artista que passou sua vida internado numa instituição psiquiátrica não está apenas na atualização do gênero à religiosidade contemporânea. Bispo do Rosário foi um artista de definição complexa. Mesmo “ausente” do mundo, antecipou todas as questões do nouveau realisme francês dos anos 60, sem jamais ter ouvido falar de Pierre Restany e sua turma.

O ex-marinheiro, que um dia teve uma visão de anjos anunciadores e foi parar no hospício, tinha a mesma obsessão colecionista dos novos realistas franceses, que incorporavam objetos do cotidiano a seus trabalhos. Bispo também enfileirava talheres, copos e pares de sapatos. Gastou anos confeccionando um manto que pretendia usar no dia da apresentação ao Senhor. Foi enterrado sem ele.

Arrigo traduz na missa o drama de uma vida dedicada ao mundo celestial por um religioso obsessivo. Não há coros jubilosos nem exaltação messiânica na obra. Discreta, a missa segue acentuando o profundo pesar da existência de um ser alienado e morto socialmente, como Bispo do Rosário.

Começa com um Kyrie longo que parece dividido em três partes, como se Arrigo tentasse interpretar musicalmente o enigma da Trindade por meio de vozes femininas, masculinas e percussão sinfônica. Um tema descendente, marcado pela voz do baixo Flávio Alberto Borges, aproxima o Gloria da harmonia neoclássica e da esfera de influência de Webern, o que não torna a música do brasileiro menos característica. Ao contrário. O músico curva-se à tradição sem desfocar a questão contemporânea da multidisciplinaridade.

A obsessão de Bispo pela repetição serialista é marcada pela construção de uma idéia rítmica que fica mais clara em Sanctus, trecho mais tocante dessa missa, “summa” musical de Arrigo em que se destaca o solo da soprano Viviana Casagrande. Com ela, a geração do Lira atinge o estado de graça.

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