Antônio Abujamra mantém seu jeito contestador mesmo na TV, que chama de “rascunho”

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Com Guerón e Cavendish
em Andando nas Nuvens.

Em Começar de Novo, o intelectual Dimitri tem sempre um argumento na ponta da língua para tentar colocar um pouco de ordem na cabeça do atormentado amigo Miguel Arcanjo, vivido por Marcos Paulo. Fora das telas, seu intérprete, Antônio Abujamra, gosta mesmo é de "tirar as coisas do lugar". Aos 73 anos de idade, o artista contestador, que já dirigiu mais de cem peças de teatro e classifica a tevê como "um rascunho", garante que se diverte fazendo novelas. E parece se divertir ainda mais com as inquietações de quem tenta entender sua "lógica". "Recebi centenas de e-mails dizendo que eu não deveria fazer a novela. Respondo que tenho de fazer a feira, que devo dinheiro a todo mundo, que jogo em cavalos e perco", simplifica Abujamra, com naturalidade.

Dono de uma irreverência ácida, o ator e diretor propala aos quatro ventos sua aversão a entrevistas. Mas, no fundo, parece interpretar mais um de seus inúmeros personagens. Intercala frases cortantes, xingamentos e muxoxos com críticas apaixonadas e o relato de sensíveis lembranças. Num minuto, garante não agüentar mais ouvir "perguntas medíocres" e, no seguinte, discorre com entusiasmo sobre sua arte. E acaba por revelar o segredo do "jogo" em que transforma a entrevista, tentando arrancar dela algum sentido artístico. "Quem tem medo deve ser estraçalhado", sentencia, com um sorriso sutil.

É esta mesma "filosofia" que Abujamra aplica no Provocações, programa que comanda há quatro anos na TV Cultura. Nesse período, cerca de 500 pessoas entre intelectuais, artistas e pessoas anônimas, como engraxates, sapateiros, empregadas domésticas e prostitutas, já enfrentaram sua língua afiada, mas ele faz questão de dizer que não é "provocador", e sim "provocado". "Sou provocado pelo meu país, pelas coisas que acontecem nas ruas, dentro dos ônibus", justifica o ator, que não esconde a satisfação com o programa. "Acho fantástica a possibilidade de as pessoas existirem falando o que quiserem. Podem falar qualquer coisa, porque ninguém assiste àquilo mesmo", conclui, virando alvo da própria irreverência.

P: O fato de ter trabalhado tantos anos com direção torna mais difícil ser dirigido?

R: Eu acredito que o simples fato de ser ator já me leve à necessidade de uma direção. Quando eu era diretor, sempre dizia: "Ser diretor é dominar a arte de ser desnecessário. É como ser pai. Você encaminha a criança e, quando ela cresce, não precisa mais de você". É difícil ser desnecessário. Mas o ator gosta de ouvir o óbvio. Eu me divirto muito sendo ator e tento transfigurar, enriquecer qualquer orientação que os diretores me dão.

P: Mas você ainda se pega às vezes com um olhar de diretor sobre a cena?

R: Não, mas me pego me avaliando como ator. Passei por uma fase difícil de superar. Ainda hoje, às vezes eu faço um gesto e, quando me dou conta, estou analisando aquilo como diretor e até perco a volúpia da interpretação. Aliás, acho que eu seria um diretor que jamais aceitaria Antônio Abujamra como ator. Ser diretor é uma coisa rigorosa, disciplinada, responsável. Eu, como ator, quero ser irresponsável, não quero ser sério, quero me divertir. E está acontecendo isso nesta novela.

P: Como é contracenar com atores iniciantes depois de ter trabalhado com eles tantos anos no teatro?

R: Eu dirigi os melhores e os piores atores do Brasil. Dirigi Cacilda Becker, Jardel Filho, Glauce Rocha, Lilian Lemmertz, Denise Stoklos, Vera Holtz. E sempre digo que, assim como no Jockey Club há os caras que treinam melhor éguas, eu sempre fui um grande treinador de éguas. Sempre dirigi melhor as mulheres que os homens brasileiros. Isso foi um grande exercício ao longo de anos. Mas, hoje, olhar o trabalho de jovens atores é só olhar. Olhar e pensar que preciso começar a escolher a cor do meu caixão.

P: É mais fácil se aproximar deste "genial" tendo um programa próprio na tevê?

R: Acho muito difícil fazer uma coisa boa em televisão. Os donos das emissoras não querem que o povo realmente saiba das coisas. Eles querem é Ibope, querem faturar e faturam muito bem. A televisão ainda é virgem, tem de ser descoberta. E como é que se descobre uma virgem? Como é que se leva uma virgem a fazer as coisas acontecerem "gostosamente" para ela e para você? Eu já trabalhei muito em tevê, dirigi na Tupi, na Excelsior, na Bandeirantes, na Cultura, fiz teleteatro sem parar. Antigamente, alguns diretores pediam coisas que se aproximavam mais de algo artístico. A Globo pode fazer o que quiser e dará certo, poderia experimentar muito mais, coisas fantásticas. E num momento vai dar certo. É claro que um dia cai. Um dia caiu Nero, caiu a Grécia, os Estados Unidos vão cair, todo mundo cai. Mas o fato é que a tevê ainda precisa ser descoberta.

P: Então você ainda acha possível fazer "arte" na tevê?

R: Acho a palavra arte muito complicada. As pessoas sabem a diferença entre um quadro na rua do Saara e um quadro no Museu do Louvre? Você acha que as pessoas ficam olhando três horas para um Cézanne para perceber que entre a pêra e a maçã há uma tinta que deu mais trabalho que as duas juntas? Quem é que pensa em fazer uma televisão só desta tinta? As pessoas querem é olhar a pêra e a maçã. Eu acredito que dá para se fazer qualquer coisa na tevê, desde que se tenha habilidade. Desde que se saiba que quem gosta de abismos tem de ter asas. É preciso buscar os talentos e deixar os talentos existirem. Aí vai acontecendo um monte de coisas. Mas eu tenho 73 anos de idade, não tenho mais direito de ter esperança.

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