Além da realidade nua e crua do Carnaval

Os maiores de trinta anos lembram daquelas “matinês” do carnaval em Curitiba. Quase todos os clubes faziam bailes para as crianças, geralmente nos domingos e terças à tarde.

Era igual no Santa Mônica, no Curitibano, no Thalia, no Pinheiros (hoje Paraná Clube), no Círculo Militar: a meninada toda paramentada (alguns adorando, outros odiando) fazendo fila pelo salão para dançar as marchinhas que faziam sucesso desde os anos 30s.

A festa começava por volta das 15h e terminava quatro horas mais tarde – a tempo dos funcionários limparem o salão e deixarem tudo pronto para o baile da noite, onde os menores não eram bem-vindos.

Aquelas matinês eram permitidas para crianças. O máximo que poderia se ouvir, nos idos de 1982 ou 1983, era a hoje “inocentíssima” e politicamente incorreta Cabeleira do Zezé, de João Roberto Kelly: “Olha a cabeleira do Zezé / será que ele é / será que ele é / (bicha!) / será que ele é Bossa Nova / será que ele é Maomé / parece que é transviado / mas isso eu não sei se ele é / corta o cabelo dele…”. De resto, apenas as composições antigas e cantadas com euforia por meninos e meninas, e também por pais e mães.

Hoje, os pais e as mães não levam os filhos nos bailes de carnaval. Poucos clubes de Curitiba realizam festas. Matinês, então, são raríssimas. E as músicas de carnaval mudaram muito.

Para começar, não há mais composições específicas para o período. Há artistas guardando, principalmente na Bahia, músicas para serem lançadas durante a festa.

Mas não há mais aquele grupo de compositores transmitindo o clima galhofeiro do carnaval para as canções. Ao contrário – talvez pelo gosto do público, talvez pelo “pós-modernismo’ (ou “pós-tudo’) na cultura popular, hoje rompemos a barreira da realidade nua e crua.

Estamos além da realidade. Conheça Canga, do grupo baiano Jammil e Uma Noites (você pode não conhecer, mas faz sucesso no carnaval em todo o País): “Você me olhou com seus olhos de gulosa / Me devorou com seu beijo tubarão / Me atiçou, gata no cio / E eu acreditei e não consegui dormir / E eu acreditei e não consegui dormir…”. Um “clássico’ do grupo Asa de Águia é Manivela: “Pega no dedinho dela / Pega no joelhinho dela / Pega na coxinha dela / Sobe mais um pouquinho…”. E o Harmonia do Samba, do evangélico Xanddy? Tem a canção Agachadinho: “Tem gente / Que só faz com camisinha / Pessoas / Que só usam quando quer / Prefiro previnir dar um jeitinho / Com sexo seguro, com carinho / Você pode fazer agachadinho…”.

Quando não exageramos no sexo e (ou na violência, como no funk carioca), conhecemos pérolas inenarráveis do cancioneiro popular. Como Insolação do Coração (hein?), da dupla Michael Sullivan e Carlinhos Brown: “Vai vai vai fica aqui meu avião / Vem vem vem que o Brasil não tem vulcão / Vai vai vai suba aqui na minha moto Vem vem vem aqui não tem terremoto…”. Ou grandes êxitos de Daniela Mercury, como Charles Ylê: “Bogum bogum / Que realeza, Charles / Beleza negra / Negra marrin / Negra salim / Salamaleikum, Charles / Salamaleikum…”. Composição, claro, de Carlinhos Brown.

Acabou o lirismo e a simplicidade das músicas de carnaval. Quando se tratava da relação homem-mulher, houve Malmequer, de Cristóvão de Alencar e Newton Teixeira (“Eu perguntei a um mal-me-quer / Se meu bem ainda me quer / Ela então me respondeu que não / Chorei, mas depois / Eu me lembrei / Que a flor também é uma mulher / Que nunca teve coração…”. Ou então Pastorinhas, de Noel Rosa e João de Barro: “A Estrela D’Alva / no céu desponta / e a lua anda tonta / com tamanho esplendor / e as pastorinhas / pra consolo da lua / vão cantando na rua / lindos versos de amor…”. E t,ambém tem Máscara Negra, de Zé Kéti e Hildebrando Pereira Matos: “Quanto riso, oh, quanta alegria / Mais de mil palhaços no salão / arlequim está chorando pelo amor da colombina / no meio da multidão”. E, se faltar exemplo, ainda temos A Jardineira, de Benedito Lacerda e Humberto Porto: “Oh, jardineira, por que estás tão triste / mas o que foi que te aconteceu / “Foi a camélia que caiu do galho / Deu dois suspiros e depois morreu’ / Vem, jardineira / Vem meu amor / Não fique triste / Que este mundo é todo teu / Tu és muito mais bonita / Que a camélia que morreu…”. Quando entravam na onda da crítica de costumes, eram facilmente compreensíveis para todas as classes, como na já citada Cabeleira do Zezé.

Composições como essas podem ser consideradas “cafonas’ ou “ultrapassadas’ pelos catedráticos em música de hoje. E certamente não serão as paixões dos jovens – que querem ouvir de tudo no carnaval, menos música de carnaval.

Ouviremos sertanejo universitário, ouviremos funk e ouviremos axé. Ouviremos samba e pagode também. Mas não vamos ouvir a música que consagrou o carnaval brasileiro como a maior festa popular do País.