Abel Ferrara garante polêmica em Cannes

Bernardo Bertolucci disse que Welcome To New York é um filme belo e potente.

Paolo Sorrentino acrescentou que, além de brilhante, o filme possui a mestria de Vício Frenético/Bad Lieutenant. E Milos Forman arrematou: “Adorei enormemente a performance genial de Gérard Depardieu. É o melhor filme de Abel Ferrara”.

Todos esses elogios não convenceram a comissão de seleção do Festival de Cannes – leia-se Thierry Frémaux, apadrinhado por Gilles Jacob, em sua última seleção -, e Welcome To New York não participa da competição nem de nenhuma outra mostra na Croisette. Em revanche, o diretor resolveu criar o evento – Welcome To New York foi exibido no sábado à noite numa sessão secreta, na cabine montada na praia do Hotel Carlton. Ela foi seguida de debate com o diretor, Ferrara, e o elenco, Depardieu e Jacqueline Bisset.

Cannes não seria o que é sem glamour nem alta qualidade estética, mas também uma boa dose de escândalo. Durante 12 dias, a cidade balneária encravada na Cote d’Azur vira uma gigantesca vitrine. O que ocorre aqui, imediatamente repercute na mídia de todo o mundo.

No sábado, Salma Hayek, produtora de O Profeta – sobre Khalil Gibran -, transformou a montée des marches num ato político. Ela passou pelo tapete vermelho carregando um cartaz pedindo ações concretas pelas meninas desaparecidas na Nigéria. Ontem, na apresentação de Jauja na mostra Um Certain Regard, Viggo Mortensen, em apoio à Argentina, portou outro cartaz – ‘Queremos a Copa’. Ferrara não poderia ter escolhido foto melhor para o seu ‘escândalo’.

Você se lembra de outro maio, há um par de anos, quando o diretor-gerente do Banco Mundial, o francês Dominique Strauss-Kahn, foi acusado, em Nova York, de abuso sexual. A versão que ganhou o mundo dava conta que Strauss-Kahn atacou a camareira de seu quarto de hotel em Manhattan, para forçá-la a manter relações.

O caso ocorreu às vésperas de Strauss-Kahn se demitir do cargo, para se habilitar a uma indicação para concorrer à presidência da França. Sexo, poder e dinheiro. Martin Scorsese valeu-se desses elementos para dar o que falar no Oscar deste ano, mas O Lobo de Wall Street é lobinho, perto de Ferrara.

Nas três primeiras cenas, e elas são longas, duram bem uns dez minutos cada uma, Strauss-Kahn faz sexo no gabinete e, depois, na mesma noite, participa de uma bacanal e recebe duas prostitutas de luxo em sua cabine. O sexo é violento, vamos poupar o leitor dos detalhes. Vamos apenas dizer que Linda Lovelace não tinha a garganta tão profunda assim, face ao que nos é dado ver. As feministas vão querer matar Depardieu simplesmente por ter feito o filme. Ele disse que não poderia recusar: “É uma tragédia shakespeariana”. Acrescentou que, acima de tudo, tentou não julgar. “Todos temos um monstro dentro de nós. Tenho certeza de que todo mundo aqui é adulto e sabe do que estou falando.”

Ferrara disse que, por coincidência, estava em Nova York quando o caso ocorreu – o ataque à camareira. Acompanhou o caso pela TV e seguiu as audiências públicas e os autos do processo. Tudo que aparece no filme é documentado, todo mundo sabe quem Depardieu está interpretando, mas, para se salvaguardar, Ferrara e seu roteirista, Chris Zois, deram ao protagonista o nome de Devereaux. Como em Bad Lieutenant, Ferrara se recusa a filmar a redenção. “Não havia arco dramático naquele filme. O personagem começava e terminava na mesma loucura. O mesmo ocorre aqui, com Devereaux.” Como reagiu a família de Strauss-Kahn? “Eles ainda não viram o filme, mas até aqui têm mantido distância.”

Justamente, a redenção – havia em O Lobo de Wall Street? De certa forma, sim, na medida em que o retorno do personagem de Leonardo DiCaprio, no desfecho, era uma exigência do seu público. Ferrara, de alguma forma, filtra seu Lobo por Stanley Kubrick, A Laranja Mecânica. Lembram-se de Alex/Malcolm McDowell? Na sociedade futurista, o desajustado era submetido ao tratamento Ludovico e Kubrick construía o arco para que o público esperasse pelo retorno de Alex à selvageria. Eram anos de contestação contra o ‘sistema’.

Strauss-Kahn agora sabe que é enfermo, mas desdenha do psicanalista que busca as origens da sua compulsão sexual. Ele olha para a câmera e manda o público, o mundo, àquele lugar. De nada adiantam os elogios, ou alguém acha que Welcome To New York vai para o Oscar no ano que vem? Depardieu, de qualquer maneira, mereceria uma indicação. E Jacqueline Bisset, como sua mulher, outra. Na ficção, como na realidade, a mulher, Anne Sinclair, de uma família muito rica, costurava as alianças para que o marido fosse presidente. Alguém vai terminar reclamando da truculência de Ferrara.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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