À imagem e semelhança de Douglas Sirk

São Paulo – Há um culto a Douglas Sirk. O cineasta americano de origem dinamarquesa iniciou sua obra na Alemanha, mas foi em Hollywood, nos anos 1950, contratado pela empresa Universal, que ele realizou a série de melodramas que fez a sua glória. Quase todos, menos o último – o sublime Imitação da Vida, de 1959 -, são interpretados por Rock Hudson.

Sirk revive agora por meio de Todd Haynes, com Longe do Paraíso, a outra grande estréia de hoje. É o mais sirkiano dos melodramas que o autor não realizou. Em meia dúzia de filmes a partir de 1985, Haynes vem desenvolvendo uma interessante obra autoral. Em Veneno (Poison), de 1991, voltou-se para Jean Genet; em Velvet Goldmine, de 1998, seu filme até aqui mais famoso e o melhor, explorou as possibilidades dramáticas do universo do glam rock, por meio de uma narrativa em puzzle como a do clássico Cidadão Kane.

O cinema de Haynes investiga a sociedade consumista e repressora e também a linguagem. Quando ele nasceu, em 1961, Sirk já havia encerrado sua obra. Haynes gosta de dizer que não conheceu os filmes de Sirk na televisão, como a maioria das pessoas de sua geração.

Conheceu-o de forma muito mais elitista, no curso de semiologia da Brown University, no começo dos anos 80. Seus professores eram lacanianos de carteirinha, havia discussões acirradas sobre freudianismo e o feminismo dos anos 70. “Sirk já estava no seu pedestal”, ele gosta de lembrar. E aí morreu Rainer Werner Fassbinder, que considerava o rei do melodrama uma referência fundamental para sua obra.

Sirk virou uma obsessão para Haynes, que estudou detalhadamente sua obra. Quando fez A Salvo (Safe), seu primeiro filme com Julianne Moore, em 1995, ele chegou a pedir à diretora de fotografia Maryse Alberti que estudasse o sistema de iluminação de Sirk.

Mulheres

Longe do Paraíso é um filme sobre mulheres e para mulheres. Ela se chama Cathy e é a personagem de Julianne Moore. Vive numa gaiola dourada, devotada à família, ao marido e aos filhos, no que parece ser o paraíso, encarnado numa cidadezinha provinciana, na América dos anos 1950. Mas há uma serpente nesse paraíso. De repente, ela descobre o marido aos beijos com outro homem. Seu universo desmorona. O apoio vem por meio do jardineiro, como em Tudo o Que o Céu Permite, de Sirk, só que agora ele é um homem negro. Essa relação, que nunca vira sexual, desencadeia o racismo da comunidade.

Como Sirk fazia em seus filmes ele usa o quadro da natureza para realçar o tema dramático. As cores de outono realçam a tragédia de Cathy, mas a primavera termina por reconstituir as flores do seu jardim, como ocorre na vida dessa mulher. Todo Sirk está aqui presente, com as escadarias e os espelhos – imitações da vida -, sempre importantes na estética do refinado mestre dos anos 1950.

Por mais que essa referência, essa influência seja proposital, na verdade Longe do Paraíso é um filme de Todd Haynes. Belo, elegante, mas também quase teórico na sua exposição da maior de todas as lições sirkianas. Sirk usava o artifício do melodrama para falar sobre uma sociedade baseada na aparência, portanto, na falsidade. Haynes consegue pôr na tela, criticamente, a América de Bush a partir daquela de Sirk. Julianne Moore é sublime. O que mais se pode dizer dessa atriz senão que ela é uma das melhores, talvez a melhor de sua geração?

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