A falência da utopia

Adeus, Lênin!, de Wolfgang Becker, que estreou ontem nos cinemas brasileiros, tem sido um persistente sucesso na Alemanha. Ganhou como melhor filme europeu e é o indicado do país para disputar uma das vagas ao Oscar na Academia de Hollywood. E, de fato, há um inegável encanto nessa comédia amorosa sobre o fim do socialismo real.

A história fala de uma mulher, Christiane Kerner (Katrin Sass), abandonada pelo marido, e que, por ideologia ou compensação, se dedica integralmente à construção do socialismo na Alemanha Oriental. Um dia, vendo o filho numa manifestação contrária ao regime, ela tem um troço e cai em coma profundo. Durante seu sono, tudo muda, o Muro cai e os camaradas, reintegrados à economia de mercado, vão alegremente às compras.

Mas um dia ela acorda, e o filho, Alex, acha que a mãe deve ser preservada do choque. Com a ajuda de amigos, cria uma réplica da antiga sociedade. Grava em fita imitações daqueles chatíssimos programas de TV e faz a mãe acreditar que eles estão sendo transmitidos no momento. Consegue exumar insípidos produtos comerciais do tempo do comunismo, e leva as preciosidades de presente à mãe. E assim por diante.

Rir é o melhor remédio, como diz aquela antiga seção da Seleções do Reader?s Digest, e os alemães bem podem se divertir com aquilo que era uma tormentosa realidade recente. Como todo mundo sabe, até 1989, um muro cortava Berlim, e essa construção indecente era símbolo da cisão entre o mundo capitalista e o comunista. Com a queda do Muro, a falência da União Soviética e a reunificação alemã, mudou a configuração do mundo. Acabou o socialismo, não apenas os regimes concretos, mas a própria doutrina como aspiração viável ou alternativa teórica ao capitalismo. Fim da guerra fria, fim das ilusões, falência das utopias. O registro de Adeus, Lênin! encontra significado nesse ambiente histórico.

O espectador vai notar que não se trata de uma comédia escrachada, que faria pouco de um passado sentido como meio ridículo ou detestável. Por conseqüência, passa igualmente longe de uma apologia deslumbrada ao hoje, à sociedade de mercado e seus encantos. Becker situa-se no meio termo, no impasse, pode-se dizer. Sabe que aquele mundo que acabou não era nenhuma maravilha, da mesma forma que este, em que se encontra, também não é de molde a arrancar suspiros de ninguém. Enfim, seu ponto de vista é o do homem inteligente e moderno, que deve ser crítico, sem se apegar a mistificações do passado ou a lendas do presente. Daí a construção dessa personagem que ?desperta? em estado de pureza, despreparada para o mundo novo.

Semelhança

Em certo sentido, Adeus, Lênin! parece muito com outro filme de sucesso atual e que também tematiza o fim das ilusões com infinita ternura: As Invasões Bárbaras, do canadense Denys Arcand. Ambos trazem situações pungentes, descritas com o tempero do humor. Falam de um mundo que desapareceu, e fazem seu trabalho de luto em relação a ele sem idealizá-lo. A ironia, o senso crítico, a polidez no trato com o outro são seus pontos comuns. Enfim, falam de derrotas, com a serenidade de quem sabe que fracassos e vitórias são sempre transitórios e reversíveis, porque jogados na dimensão do tempo.

Por isso mesmo, por não transmitirem certezas definitivas, correm o risco de serem interpretados segundo a vontade do freguês. Muita gente viu em As Invasões Bárbaras a capitulação ao modelo vigente, porque é o filho yuppie quem, com seu dinheiro, permite ao pai a morte confortável. Certo, essa dimensão existe, mas elegê-la como foco principal significa ler o essencial através do acessório. Da mesma forma, não faltarão exegetas que vejam em Adeus, Lênin! um elogio ao conformismo moderno. Mas seria reduzir esse belo filme a uma dimensão única. E ele só é belo justamente porque composto de várias partes que se contradizem entre si. Esse equilíbrio instável é seu encanto, porque aponta para dúvidas e não para conclusões.

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