Luto no futebol brasileiro

Virou moda, no Brasil, chamar de professor qualquer técnico, mesmo que tenha dirigido apenas quatro ou cinco jogos de equipes juvenis. Mas mestre, daqueles que de fato ensinam, formam jogadores, há poucos. Um dos que mereceram a honraria, o maior de todos nas últimas décadas, foi Telê Santana. Pois o grande mestre do futebol nacional morreu ontem, em Belo Horizonte, aos 74 anos, depois de ficar 28 dias internado no Hospital Felício Rocho.

Telê foi internado por causa de uma infecção no abdômen. Seu estado agravou-se durante o período em que esteve no hospital, com o surgimento de infecção também no pulmão, além de problemas nos rins e no fígado. Depois de uma leve melhora no início da semana, a saúde do ex-técnico piorou progressivamente desde a noite de quarta-feira, quando ele deixou de responder aos medicamentos.

A morte foi constatada às 11h50 de ontem. A causa, segundo os médicos, foi uma colite isquêmica que evoluiu para falência múltipla de órgãos. Ele estava com a saúde bastante debilitada por um acidente vascular cerebral (derrame) que sofreu em 1996.

Carreira

Telê colecionou títulos, cultivou a fama de ranzinza, perfeccionista e, por conta de seu temperamento, teve também muitos desafetos. Principalmente entre os jogadores. Mas, como acontece com todo mestre, o tempo sempre se encarregou de mostrar que, afinal, estava com a razão – e os rebeldes reconheciam a importância de seus conselhos. Foi assim com Jorge Mendonça, Renato Gaúcho, Macedo, Escurinho, alguns craques com os quais teve atritos rumorosos. Cedo ou tarde, admitiram que as broncas eram justas e sensatas.

Telê justificou, ao longo da vida, o apelido de Fio de Esperança que lhe foi dado pelo cronista Nelson Rodrigues, nos anos

50, quando era aplicado ponta -direita do Fluminense, seu time de coração. Franzino, obstinado, dedicadoao clube, o mineiro que nasceu em 26 de julho de 1931 em Itabirito servia de exemplo para companheiros. Solidário, correto com os rivais, ganhava com facilidade a confiança de treinadores, a simpatia das arquibancadas. Foi assim depois como técnico: levava esperança aos clubes.

A fidelidade ao Fluminense, dentro de campo, se estendeu por mais de uma década e lhe rendeu dois títulos cariocas (51 e 60) e um Torneio Rio-São Paulo (59). No começo dos anos 60, antes de encerrar carreira, ainda passou por Guarani, Madureira e Vasco. Depois de pendurar as chuteiras, foi nas Laranjeiras que começou a carreira de treinador, que lhe deu fama e o levou a comandar a seleção brasileira em dois Mundiais (82 e 86).

Telê começou por baixo, como era comum na época, ao dirigir os juvenis do Fluminense em 1967, com os quais ganhou o título estadual da categoria. No ano seguinte, repetiu a dose com os juniores. O talento para formar atletas já era de veterano, a ponto de chamar a atenção dos cartolas, que o promoveram para guiar o time principal. Não se arrependeram: a equipe foi campeã do Rio em 1969.

Bastou para o nome de Telê correr o País. O Atlético Mineiro o convidou para voltar para casa e lhe deu a incumbência de armar o time para o torneio doméstico. Resultado? Galo campeão estadual em 1970 e primeiro campeão brasileiro, em 1971, na fórmula então criada pela antiga Confederação Brasileira de Desportos (hoje CBF).

Telê teve passagem rápida pelo São Paulo em 73, perambulou por alguns clubes até firmar-se no Grêmio, em 77. Na época, teve a proeza de quebrar hegemonia do Inter, ao conquistar o troféu gaúcho e consolidar a fama de disciplinador e defensor obstinado do fair-play, do jogo limpo. ?Futebol é arte, é diversão?, costumava dizer. ?Se tiver de apelar para a força bruta, então coloco em campo um grupo de estivadores.?

A trajetória de Telê deu guinada radical em 1979, quando aceitou proposta de treinar o Palmeiras. Com um elenco composto por jogadores experientes (como Beto Fuscão, Jorge Mendonça, Polozi) e jovens (Pedrinho, Baroninho, Pires, Mococa, Jorginho), criou uma equipe que encantou o Brasil, dava espetáculo, aplicou surra histórica de 4 a 1 no Flamengo, no Maracanã, mas caiu nas semifinais do Brasileiro diante do Inter. Aquele Palestra revolucionário foi decisivo para que Giulite Coutinho, então recém-eleito para a CBF, o chamasse para a seleção brasileira.

Durante dois anos e meio, Telê formou uma das mais famosas equipes que o Brasil levou a Mundiais – e que deixou saudades, ao perder por 3 a 2 para a Itália, em 5 de julho de 82 no Estádio Sarriá. Telê teve nova chance quatro anos depois, no México, e o Brasil foi desclassificado pela França, nos pênaltis, nas quartas-de-final.

Difundiu-se a fama de pé-frio, que só desapareceu de vez no começo dos anos 90, com série impecável de títulos que conquistou com o São Paulo -os mais importantes foram o bicampeonato da Libertadores da América e do Mundial Interclubes em 92, e em 93.

A carreira de Telê foi truncada em janeiro de 1996, ao sofrer aneurisma. A doença fez com que se afastasse, e um ano depois ainda ensaiou o retorno, para atuar como diretor-técnico do Palmeiras, na era Parmalat.

A saúde frágil, porém, impediu de levar o projeto adiante.

Telê definitivamente voltou para Belo Horizonte, para ficar cercado pelo carinho da mulher Ivonete, os filhos Renê e Sandra, os netos Camila, Diogo, Mariana, Bruno. O Mestre recolheu-se, mas ficaram lições de dignidade, lealdade e eficiência.

Lições de um perfeccionista

São Paulo – ?Esse Telê é um chato.? Os repórteres que acompanhavam a rotina do Palmeiras, no início de 1979, estranhavam a demora dos treinamentos. Em geral, após o bate-bola diário ou os coletivos, os jogadores ainda ficavam no gramado do Palestra Itália por até uma hora e meia,

em sessões intermináveis de chutes a gol, cruzamentos, cobranças de falta, de escanteio, de pênaltis.

O tempo passava, o horário para voltar à redação se tornava cada vez mais apertado, e fazia crescer a angústia dos jornalistas.

Daí o ?chato? da frase inicial. Impressão que se desfazia nas entrevistas – informais, informativas, sempre consistentes. ?Jogador precisa da repetição?, advertia Telê. Em sua opinião, a habilidade com a bola era um dom, uma arte, mas que podia e devia aperfeiçoar-se. E cabia ao técnico, de preferência que também tivesse sido boleiro, transmitir conhecimento.

Por isso, Telê não se incomodava com cara feia nem com reações de enfado de seus atletas. Quando percebia que algum não se empenhava como devia, fazia com que continuasse em campo até cumprir a tarefa que lhe havia proposto. Muitas vezes, o exercício só terminava após o pôr-do-sol.

Não havia privilégios nem concessões. Esse era o método que aprendeu com Zezé Moreira, seu primeiro mestre e conselheiro da vida toda. Telê foi assim desde o início da carreira de treinador, ainda no Fluminense, e manteve-se fiel ao estilo.

Os treinos à exaustão eram um dos segredos do sucesso. A repetição fazia com que os jogadores soubessem, nas partidas, onde deveriam colocar-se para receber a bola, como deveriam agir na hora em que o adversário atacava. Com a advertência de que não queria saber de violência. ?Jogador meu que entrar para machucar o adversário, não precisa ser expulso?, advertia Telê.

?Eu mesmo tiro de campo.?

Telê não fazia média com jornalistas. Atendia a todos com a mesma disposição, embora às vezes lançasse olhares severos para algum desafeto. Mas, mesmo para os ?amigos?, não abria a guarda, não dava furos,

não concedia primazias. Tinha consciência de que a igualdade de tratamento era uma obrigação.

Na Copa de 86, por exemplo, andava mais arredio, menos expansivo do que na Espanha.

Um dia, após um treino em Guadalajara, enviei-lhe um bilhete, por meio do auxiliar Valdir de Moraes, estranhando o comportamento e pedindo uma entrevista exclusiva.

No dia seguinte, ele se aproximou do alambrado, disse que eu estava errado. ?Sei quem são os bons profissionais?, afirmou, sorrindo, amistoso.

Mas não deu a entrevista.

Seleção, história incompleta

Rio de Janeiro – Um título de Copa do Mundo. Foi o que faltou para a carreira do treinador Telê Santana da Silva ser incomparável. Ele chegou ao comando da seleção brasileira em 1980, após uma destacada passagem sem títulos pelo Palmeiras.

Estreou no comando da equipe verde-amarela no dia 2 de abril de 1980, em um amistoso contra um selecionado de novos, com vitória dos ?veteranos? por 7 x 1, no Maracanã, diante de 12.788 torcedores. Reinaldo (2), Zico (2), Falcão, Joãozinho e Baltazar fizeram os gols, com Robertinho descontando.

Telê comandou a seleção nas Copas do Mundo da Espanha (1982) e México (1986). No primeiro Mundial, o time de Zico, Falcão, Sócrates e cia. encantou o planeta, mas foi eliminado pela Itália nas quartas-de-final. Quatro anos depois, já sem o brilho da competição anterior, o time jogou bem e foi eliminado pela França, nos pênaltis, também nas quartas.

No total, Telê dirigiu a Seleção em 55 partidas, com 40 vitórias, dez empates e apenas cinco derrotas. Além da Itália na Copa de 1982, em Barcelona-ESP, a equipe sob seu comando foi derrotada pela União Soviética, por 2 x 1, em um amistoso, no Maracanã, em 1980; pelo Uruguai, também por 2 x 1, na final do Mundialito, em 1981, em Montevidéu-URU e por Alemanha (2 x 0, em Frankfurt) e Hungria (3 x 0, em Budapeste), em 1986, em dois amistosos preparatórios para a Copa.

Telê, o melhor de todos os técnicos, morre aos 74 anos

São Paulo – Telê Santana não foi campeão do mundo com a seleção brasileira. Mas é reverenciado por três treinadores que conseguiram conquistar um título que certamente ele merecia ter em sua carreira. Zagallo, técnico campeão com o Brasil em 1970; Carlos Alberto Parreira, vencedor em 94; e Luiz Felipe Scolari, ganhador em 2002, demonstraram admiração e respeito pelo mestre.

Parreira, inclusive, prometeu homenageá-lo na Copa da Alemanha. ?Telê era um defensor do futebol bonito, bem jogado, sempre em busca do gol. Ele representou muito para o futebol brasileiro??, afirmou o atual técnico da seleção. Sobre a idéia da homenagem durante o Mundial, não deu muitos detalhes: ?Todo trabalho está sendo feito com o título como objetivo e haverá uma homenagem?, disse.

O técnico da seleção não viu Telê atuar, mas o considera um revolucionário por seu trabalho como atleta. ?Sei que ele era um jogador à frente de seu tempo. Revolucionou, pois era polivalente.? Em relação ao Telê técnico, destacou: ?Ele adorava o jogo limpo e sempre destacava a necessidade do amor à camisa. Era um modelo a ser seguido.? Parreira admite ter ?várias coisas de Telê??. ?Como ele, sou organizado, disciplinado?, contou.

Campeão mundial em 2002, na Copa do Japão e da Coréia, Felipão disse ter uma imagem positiva de Telê. ?O via como uma pessoa simples, dedicada no seu trabalho, a corrigir detalhes para que as pessoas melhorassem. Pregava o fair play (jogo justo), prezava o jogo bonito?, comentou o técnico de Portugual. Amigo de Telê, – a quem definiu como uma pessoa calma, de estilo bonachão e bom contador de histórias -, Felipão considera que ele foi mais que um treinador de futebol. Zagallo, contemporâneo de Telê desde os tempos de jogador, se emocionou: ?Ele não teve a felicidade de ser campeão do mundo, mas isso é insignificante. Foi campeão de clubes e deixou o recado dele na história do futebol mundial. E era uma pessoa fantástica.?

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva divulgou nota oficial, lamentando a morte de Telê. Lula enaltece as qualidades de Telê como atleta e treinador e ?expressa sua convicção de que o futebol-arte preconizado pelo ?mestre? seguirá vivo, como um exemplo para as próximas gerações.?

Saúde piorou nos últimos 10 anos

São Paulo – O corpo do ex-técnico Telê Santana será enterrado hoje, às 11h, no Cemitério Parque da Colina, em Belo Horizonte, onde começou a ser velado às 17h de ontem. A morte põe fim a um longo calvário do ex-treinador, provocado por diversos problemas de saúde, que começaram há mais de 10 anos.

O primeiro deles foi em 30 de dezembro de 1995. Telê passava férias em Porto Seguro, no Sul da Bahia, quando, numa roda de amigos, sentiu-se mal e teve a impressão de que sua boca havia entortado. Ele relatou o fato à mulher, Ivonete, que o tranqüilizou, dizendo não haver nada de errado com o rosto do marido. Como o problema passou em questão de minutos, o ex-treinador não deu a importância devida ao ocorrido. Era, no entanto, um sinal claro de isquemia cerebral.

Telê só procurou tratamento em meados de janeiro de 1996. Ele relutou, por medo, em fazer alguns exames indicados, como uma ressonância magnética no crânio e uma tomografia, mas um ultra-som Doppler na carótida esquerda, uma artéria do pescoço, revelou uma lesão moderada.

No dia 29 daquele mesmo mês, o cardiologista Giuseppe Dioguardi, do Instituto Dante Pazzanese, em São Paulo, decidiu submeter o então técnico do São Paulo a um cateterismo. Telê chegou ao local do exame dirigindo o próprio carro e de bom humor. A informação do médico era de que o procedimento seria simples e o paciente poderia voltar para casa naquele dia.

Telê foi vaiado no Pinheirão, por não levar Dida

Carlos Simon

Um dos maiores técnicos da história do País, Telê Santana, não tinha muitas conexões com o futebol paranaense. O ?Mestre?, que morreu ontem, em Belo Horizonte, atuou como jogador ou dirigiu somente equipes de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, além da Seleção Brasileira e times do Oriente Médio. Como treinador da Seleção, Telê esteve apenas uma vez em Curitiba. E foi num jogo emblemático – contra o Chile, em maio de 1986, no último amistoso antes da viagem para a disputa da Copa do Mundo. O Brasil jogou mal e não passou de um empate em 1 a 1, no Pinheirão, com gol de Casagrande. O público não gostou da atuação, e o time, composto por experientes remanescentes da Copa de 1982 como Oscar, Júnior, Falcão, Sócrates e Zico, partiu desacreditado para o México.

As vaias foram ainda maiores porque Telê havia cortado da relação o lateral-esquerdo Dida, campeão brasileiro com o Coritiba no ano anterior. A torcida alviverde também esperava a convocação do goleiro Rafael, preterido por Emerson Leão, à época com 36 anos. O único paranaense naquela equipe era o meia-atacante Dirceu, que começou no Coxa e então jogava na Itália.

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