Ana Paula, garota do interior que faz sucesso

São Paulo – Há sete anos, uma garota do interior de São Paulo entrava na sala do temido diretor de árbitros da CBF, Armando Marques, para ouvir uma palestra. A sala já estava tomada pelos outros árbitros e auxiliares, a maioria homens, que atuariam naquele Brasileirão. Mal sentou e levou: ?Escuta, não é porque a senhora é mulher e é toda gostosa, que terá facilidades comigo não! Será tratada como os demais. Sofrerá punições sempre que falhar. Além do mais, eu nem gosto de mulher!?.

Ninguém riu da grosseria, típica do histriônico Armandinho, hoje aposentado do cargo. Passados tantos anos, a tal garota também não tem motivos para rir do que fez domingo passado, na Vila Belmiro, no clássico entre Santos e São Paulo. Ana Paula Oliveira, trabalhando como auxiliar principal do árbitro Antônio Rogério batista do Prado, aos 26 minutos do segundo tempo, anulou um gol legal do Santos e produziu a maior polêmica da semana – não tanto pelo gol anulado, mas pelo que se seguiu.

Ana, elegante e bonita como sempre, enfrentou os enfurecidos santistas com altivez. Só fraquejou uma vez, quando fechou os pequenos olhos castanhos. ?Reprisei o lance na minha cabeça naquele momento; descobri que havia algo errado.? Depois, estendeu a mão a Vanderlei Luxemburgo, que imediatamente a acolheu, e pediu desculpas pelo erro que, ela jura, só confirmou de fato quando chegou em casa.

?Sabe o que me dói, a única coisa que me dói? Falhei num quesito onde sempre fui elogiada. Eu me precipitei. Não poderia ter feito isso. Mas não lamento nada. Marquei com convicção, cometi um erro humano, espero que minha carreira não seja manchada por isso. Sonho em trabalhar numa Copa do Mundo, de preferência fazendo dupla com o Paulo César (de Oliveira). Temos o mesmo estilo. Eu adoro ele.

O erro da bandeirinha, que há dez anos resolveu se intrometer no mais machista dos mundos, atuando em ligas amadoras, causou-lhe alguns problemas, é verdade. Falaram em ?geladeira?, em segunda divisão. Sua reputação, porém, continua em alta. Aliás, o contratempo já lhe rendeu mais notoriedade do que se tivesse tido a mais perfeita das atuações. Caso isso tivesse ocorrido, sua performance teria passado em branco, como a maioria delas, já que Ana é considerada pelos especialistas ?quase perfeita?. E este não é um comentário machista.

Quinta-feira, numa mesa reservada de uma churrascaria freqüentada por boleiros de Campinas, a poucos quilômetros de Hortolândia, a pequena cidade onde Ana vive com os pais e três irmãos, Ana almoçou com o repórter da Agência Estado, na companhia da prima Nalda, assessora e confidente. Falou do erro do clássico, das conseqüências, de seus planos empresariais, sociais, da imprensa, dos colegas, contou histórias, riu muito. Em nenhum momento demonstrou vergonha pelo que aconteceu.

?Você quer saber se pegaria novamente na mão do Vanderlei para pedir desculpas? Não sei. Sou muito franca. Poderia ter tomado outra atitude. Achei, naquele momento, que foi a atitude correta. Aliás, não sabia que isso ia chamar mais a atenção do que o próprio erro. Respeito muito o Vanderlei como profissional, tenho certeza de que ele me respeita também. Foi um gesto terno, só isso…?

Ana Paula certamente jamais se esquecerá das palavras ditas a ela por Vanderlei Luxemburgo, que a desculpou automaticamente pelo erro. Ela, que há dez anos começou na arbitragem, já trabalhou em duas finais de Paulistão (2003 e 2004), uma de Copa do Brasil (2006), em oitavas-de-final da Libertadores entre Palmeiras e São Paulo (2005) e foi sempre elogiada pela precisão

Teve a coragem de anular um gol de Tevez contra o Palmeiras. Os corintianos alegavam que só ela havia visto falta do argentino no zagueiro Nem. A tevê também viu. E tem no currículo a marca histórica de ter participado, em 2003, de um jogo entre Guarani e São Paulo, no Brinco de Ouro, dirigido só por mulheres. Silvia Regina, a decana da turma, foi a juíza. ?O São Paulo ganhou por 1 a 0 e me xingaram na saída?, ela se recorda.

Ana Paula é uma mistura de italiana, negra e índia. Os irmãos são diferentes dela (?tenho um que parece um italianão de tão branco?). Ela é uma morena alta e que tem ?dois defeitos?, que a incomodam quando vai comprar jeans novos. ?Tenho cintura fina e bumbum largo, é um horror.?

Quem acompanha Ana correr sacudindo seu indefectível rabo de cavalo junto ao alambrado, equilibrando-se nas chuteiras número 38 – ?calço 37, tenho de usar dois meiões, mesmo assim as chuteiras ficam sambando no meu pé? -, é capaz de já lhe ter dito isso e aquilo. Mas quem conhece os seus planos pessoais, sabe que ela quer mais que isso.

?Sou de família pobre. Tive de começar a trabalhar em escritório aos 13 anos para ajudar em casa. Hoje, estou perto de tirar dona Lucineide, minha mãe, do aluguel; e estou reformando uma casa só minha. Sei de onde vim e o que significa uma mão para ajudar. Quero fazer a minha parte paralelamente com a minha carreira.?

Em Hortolândia, onde Ana faz questão de continuar morando ?para que tenham orgulho de mim?, embora tenha nascido mesmo é na capital, na zona leste, em São Miguel. Ana não desiste de terminar o curso de Jornalismo na faculdade local, a Hoyler. Está no quinto semestre e ?se Deus quiser, termino ano que vem; tenho curiosidade de conhecer o universo de vocês?.

Para devolver um pouco do que a vida lhe deu, Ana tem um projeto social em andamento, em Hortolândia, o Apito da Cidadania; e outro em construção, o Bola no pé e cabeça no futuro. O público-alvo são os adolescentes carentes e envolvidos com drogas na região. Tudo em parceria com a prefeitura e sem ganhar nada. ?Não quero ganhar mais, quero aprender mais. Isso me dá muito prazer.?

Mas ela também está ganhando mais. Cobra de R$ 3 mil a R$ 5 mil reais por palestra para executivos. Também recebe cachê por sessões de fotos. ?Mas aí varia, depende do tempo. E tudo autorizado, viu!? A arbitragem lhe rende menos, mas lhe abre muitas portas.

Ana enfatiza o ?autorizado? porque, em 2005, quase arruinou a carreira. E de graça. Convencida por uma produtora boa de conversa, deixou-se fotografar para um ensaio, que virou capa, da revista Vip.

Mostrou pouco, mas o suficiente para enfurecer os velhotes da Fifa, que não gostaram. E ela quase perdeu o seu escudo de ?bandeirinha/Fifa?. ?Até hoje agradeço ao doutor Marco Polo (hoje presidente da FPF) e ao Édson Rezende, chefe do Departamento de Árbitros da CBF à época. Eles trabalharam para que a Fifa não fizesse isso comigo.?

Por isso, Ana Paula trata com cuidado o tema e, até agora, tem rejeitado os convites de Playboy para um ensaio. Mas um aviso aos interessados: o primeiro passinho já foi dado. Ela concederá uma entrevista exclusiva à revista em breve. E não descarta que no futuro a coisa role. ?Afinal, só tenho 28 anos? – geminiana, completa 29 em 26 de maio.

Ana Paula é grata a quem a ajudou – e é supersticiosa. Quando trabalha com Sálvio Spinola, sabe que é sucesso na certa. ?Fazemos uma boa dupla. O Evandro Siqueira, que é bandeira, também. É um ?irmãozão?.? Tem ídolos na futura profissão. ?Adoro o Caco Barcellos. Estou lendo o Rota 66. Gosto também do Orlando Duarte, ele é um amor, um cavalheiro.?

Entrevistar a mais bela bandeirinha do futebol brasileiro e não perguntar como vai seu coração seria cometer erro imperdoável. Ela reluta, sorri sem jeito (está usando aparelhos fixos de cor rosa), mas entrega – algo do passado. Do presente? Nem pensar.

?Estive apaixonada por uma pessoa, mas tive uma grande decepção. Resolvi dar um tempo. Só posso te dizer que, hoje, tô enrolada..?

Ana Paula ainda tem uma carreira longa na arbitragem, mas quer ser mãe. Como, por enquanto, isso é impossível, em função de seu corre-corre – está inaugurando uma empresa, a UP, que cuidará de sua imagem e alimentará seu site – vai matando a vontade com o pequeno Gu, de 1 ano, seu priminho do coração. Há ainda Lana, de 8 e Renata, de 3, também primas. Mas Gu é sua única e verdadeira paixão de momento, ela jura.

O restaurante forrado de fotos de boleiros – alguns ao lado de Ana Paula, amiga da família dos japoneses que tocam o negócio – vai ficando vazio e ela precisa ir embora. Antes, faz uma concessão: ergue o rabo de cavalo e exibe sua tatuagem delicada, nas costas, feita há dias, situada quatro a cinco dedos abaixo do ombro direito. Trata-se de uma pequena flor cor-de-rosa. Nela, está pousada uma borboleta. O repórter fotográfico Eduardo Nicolau registrou.

?Era segredo, ninguém tinha visto, viu!?. Não é mais.

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