O classudo Château Margaux em um enredo aterrorizante!

Entre abril e maio de 2007, vagava pelo sudoeste da França, junto ao confrade Rogério Marcondes, em um motor-home, com destino ao Château Margaux, onde seríamos recebidos pelo seu afamado diretor, Paul Pontallier, conhecido no Brasil pela sua participação no filme-documentário intitulado “Reserva Especial”, apresentado por Renato Machado.

 

Estávamos lá sob o especial convite de realizarmos o premier tasting[1], em avant-première[2], da grande safra bordalêsa do ano de 2005, que, na maior parte dos vinhedos nobres, ainda se encontrava descansando em pequenas barricas francesas de primeiro uso, como um bom primier cru classé[3].

 

O Château Margaux é um vinho clássico e oneroso, deveras conhecido no mundo e inúmeras vezes citados em livros e filmes, como Aracnofobia, 1990 (rodado com aranhas verdadeiras da Nova Zelândia e, não obstante serem gigantescas, eram inofensivas), também, como exemplo de sua fama,  ente fatos inusitados, encontra-se a inspiração para o nome que foi dado à atriz e modelo americana Hemingway (Louise Margaux Hemingway, 1955 – 1996), concebida na noite em que seus pais degustaram um Château Margaux.

 

Nessa nossa passagem pela história dos “primeiros vinhos do mundo”, na qualidade de sommeliers recém-formados, deparamo-nos com algumas situações insólitas e, diria ainda, um tanto pavorosas na noite anterior à agenda de degustação.

 

Chegamos um dia antes na Cidade de Margaux e decidimos passar a noite por ali, vez que as regiões em derredor eram rurais e afastadas da civilização.

 

Já na entrada, notei a ausência de pessoas na rua e alertei o confrade que, de pronto, observou cuidadosamente o bizarro cenário: as residências mantinham suas luzes internas apagadas e algumas possuíam frestas escuras entre as venezianas.

 

A partir dali, talvez tenhamos sido vítimas de nossas próprias imaginações, contudo, entre diversas situações anômalas que se estenderam durante a noite e pela madrugada, citarei algumas, no mínimo, curiosas.

 

Ao acomodar o grande veículo em um estacionamento ao lado de uma velha estação ferroviária, onde havia um veículo estacionado, se não me engano, um VW/Golf preto em mau estado de conservação, decidimos abrir um Château Ducru-Beaucaillou, um deuxième cru[4], que havíamos adquirido em um Carrefour… Incrível encontrar um segundo cru em um hipermercado, mas estávamos na França.

 

De posse das taças, entre o silêncio absoluto de região, descemos para explorarmos tão solitária cidade, comentando sobre a densidade do vinho, da intensidade olfativa e da considerável presença do Cabernet Sauvignon, que dividia espaço na taça com uma quantidade menor de Merlot, pitadas de Petit Verdot e Cabernet Franc (famoso corte bordalês). Para nossa surpresa, percebemos que o veículo que se mantinha estacionado ao lado do nosso, o tal golf, sumira sem emitir som algum. Como era possível? Nada de portas, motor, deslocamento. Passamos a notar um único segundo veículo, uma Van verde, igualmente surrada, estacionada na rua em frente. Ao nos aproximarmos do automóvel, pela sua grande zona envidraçada, avistamos uma calça disposta ao longo dos bancos traseiros rebaixados, como se alguém deitado ali, em meio às cobertas revoltas, tivesse sumido, como em um passo de mágica, conservando as roupas naquela posição. Entreolhamo-nos pela cena surreal, e lembro termos comentado: isso só pode ser armação! E caímos na gargalhada.

 

Mais alguns minutos no silêncio sepulcral até um velho trem passar por nós a uma velocidade espantosa, deixando a velha estação abandonada para trás. Não parecia razoável admitir que um trem tão velho como aquele transitasse em uma velocidade tão alta, sobre trilhos mais envelhecidos ainda.

 

Defronte ao motor-home, havia um mercadinho de dois andares que mais sugeria uma residência, composta de sótão, improvisada. Avistamos uma torneira em um tanque externo e entendemos ser o momento ideal para reabastecermos a água do motor-home. Enquanto improvisávamos, passamos a ouvir sons provenientes do interior do mercado e decidimos parar, tendo em vista que nem todos gostavam da idéia de fornecer água gratuitamente à estranhos. Entretanto, pelas grandes janelas descobertas, ainda que houvesse um leve negrume dentro do estabelecimento, percebemos, de forma inequívoca, que não havia ninguém, nem nos corredores, tampouco no balcão do caixa. Ao nos afastarmos do tanque, trazendo a mangueira, percebemos as venezianas entreabertas na janela do andar superior, uma cena um tanto pavorosa, pois aludia à idéia de que estávamos sendo observados do interior da penumbra do sótão.

 

Depois disso, houve uma inquietação e procuramos por outro local para passarmos a noite, no entanto, o GPS não nos mostrava alternativa viável, as cidades mais próximas estavam muito distantes.

Por fim, o ápice do horror veio de madrugada, quando ouvimos o choro de uma mulher deslocar-se de um ponto para o outro lá fora, na rua e, ao mesmo tempo, alternando grandes distâncias em poucos segundos… Um choro de sofrimento, de dor, de gelar os ossos do corpo.

 

Ao abrirmos cautelosamente as cortinas no motor-home, assolados por arrepios doentios, nada conseguimos identificar de anormal nas ruas de Margaux.

 

No dia seguinte, saímos cedo para o premier tasting. Havia alguns veículos estacionados, mas ainda assim não haviam pessoas transitando pelas ruas da cidade.

 

Essa experiência foi a inspiração para o enredo intitulado “Margaux”, que compõe meu último livro “03:33 e Outras Histórias de Suspense”, Ed. Draco/SP, 2012. Vale a pena lê-lo na íntegra, como um enredo ficcional e com um final aterrorizante, contudo, vale também conhecer sobre a nota de posfácio ao final da obra, onde esmiúço cada detalhe da noite aqui descrita.

 

            Assim, se você decidir visitar o sudoeste da França e tiver coragem de passar por Margaux, tente desvendar seus inúmeros mistérios, e não estou falando do vinho… Creio que vale separar aqui um espaço para esclarecimentos, não acha?

 

Até a próxima coluna… Cheers!



[1] Primeiro teste de Vinho.

[2] Estréia do teste, por estranhos à vinícola.

[3] Literalmente “o primeiro cultivo”, no entanto, é uma expressão idiomática que no mundo do vinho significa a “primeira colocação” em um sistema de classificação ocorrido em 1855, em Bordeaux, o qual consolidou a posição dos vinhos bordalêses dos primeiros aos quintos melhores. Ao longo do tempo raríssimas alterações foram feitas, com distinção para o caso do Château Mouton, que se elevou à condição de premier cru classé em 1973, ganhando um especial rótulo, a última pintura de Pablo Picasso.

[4] Segundo Cru, entre os segundos melhores vinhos produzidos na região de Bordeaux, pela Classificação de 1855.