Nova obsessão: subir minha nota no app de carona

ônibus Novo Mundo, em Curitiba. Foto: Átila Alberti

Cheguei em Curitiba há 30 anos, no começo da década de 90. Lembro-me do primeiro dia de aula na cidade grande. Vinda do interior do Paraná, eu era uma menininha cabeluda e pé-vermelho de 4 anos de idade. Até então, minha maior preocupação na vida estudantil tinha sido colar lantejoulas, ligar pontos e pintar formas geométricas.

Ao chegar em Curitiba, porém, quase que instantaneamente adquiri novas e grandes preocupações no alto da pré-escola. A primeira e mais marcante questão com a qual me deparei e que, poucas semanas depois da minha chegada viria a tornar-se preocupação prioritária, eram os topetes.

Em 1991, se você vivesse em Curitiba e não portasse um belíssimo topete, embalsamado de spray e cheio de grampos, você estava fora dos grupinhos legais. Não bastasse o topete, alguns outros quesitos também tinham enorme potencial de determinar se você se enquadrava ou não e, consequentemente, definir qual seria a sua “patotinha” pelo menos até o segundo ano do ensino médio. Tais pressupostos incluíam: fazer ginástica olímpica; comprar o lanche na cantina (jamais levar de casa) e usar tênis de luzinha colorida. Por sorte eu aprendi bem rápido. E na primeira série, já mais madura e vivida, aprendi que pra uma criança interiorana, asmática, de família natureba e botas ortopédicas, o melhor era voar sempre abaixo do radar.

Desenvolvi a prática de ser invisível, falando somente com quem falava comigo. Outra coisa interessante que me forcei a aprender em Curitiba, era uma prática comum daqui que, no começo, muito me intrigou: fingir que não conhecia meus colegas de escola quando os encontrava na rua, na padaria, no supermercado, etc. Isso eu nunca entendi mas, aparentemente a regra era essa no meu bairro. E assim, a partir da terceira série do ensino fundamental, graduei-me como curitibana quase nata. Só que sem o topete.

Com o tempo, desenvolvi a dose certa. Quase como a fórmula secreta da prática social curitibana que tem a miligramagem exata de interação, a depender do ambiente. Exemplo: elevador. Aqui a regra é: falar do clima. “Esfriou né? Nossa, acho que hoje chove…” E pronto. Passou disso já fica estranho. Na fila do banco/supermercado/farmácia: limite-se a respirar e eventualmente suspirar um pouco mais alto se a demora for grande. No transporte coletivo: nada de conversinha. A não ser que você queira que a cidade inteira fique sabendo da sua vida e que você não é curitibano, já que – quem é daqui mesmo – não fica falando assim em público (e também porque aparentemente escutar conversa alheia no ônibus é modalidade esportiva em Curitiba, eu adoro!).

Seguindo a lógica, seria de se imaginar que a regra valesse para todas as situações da vida cotidiana mas, aparentemente, tal padrão não seguiu a modernidade. Duro foi descobrir isso da pior forma possível, no dia que deparei-me com minha nota num aplicativo de transporte particular: 4.92 – o que considerei péssimo.

Explico: aparentemente o app, começou recentemente a tornar acessível aos usuários, suas respectivas notas, resultado da avaliação dos motoristas. A nota máxima é cinco; a mínima é zero. Os critérios que determinam a nota alta ou baixa são bastante incertos e a avaliação – até onde eu entendi – depende do comportamento do passageiro durante a corrida. Exemplo: vomitou no carro? É zero! Tratou mal o motorista? Zero! Deixou o condutor plantado te esperando? Zero! E por aí vai.

A grande questão é: a não ser que alguém tenha hackeado minha conta no aplicativo, eu juro (é sério mesmo) que nunca cometi nenhum dos delitos supracitados. Muito pelo contrário, excelências. Ao assimilar que estou pegando carona no seu carro, o mínimo que posso fazer é cumprimentá-lo educadamente, usar o cinto de segurança, trocar algumas palavras contigo e seguir a viagem feliz, relaxada, grata por estar sendo conduzida em segurança e pensar na vida. Até então, minha “prática caronística” envolvia ações simples como olhar a paisagem pela janela, curtir a música, comentar uma ou outra notícia e seguir quietinha, como todo o bom curitibano.

O problema é que, ao que tudo indica, isso não é mais suficiente. O problema número dois é que eu realmente não sei o que fiz de errado. O problema número três é que a única justificativa possível para a queda da minha nota, talvez tenha sido o fato de eu não ser a passageira mais falante, mais puxadeira de assunto, mais tagarela. Logo eu, que tive que aprender a “ignorar” as pessoas, agora luto contra a minha identidade curitibana, forçando-me a encontrar temas interessantes para entreter as viagens inter bairros com coversas malabarísticas. O problema número quatro é que eu estou claramente dedicada à melhora da minha nota, tendo chegado ao ponto de levar sempre na bolsa, bombons e balinhas de lembrancinha pros motoristas e que eu não sei até que ponto isso é ok ou uma prova irrefutável de que preciso conversar mais sobre aceitação com a minha terapeuta (necessidade de aprovação? Oi? ).

Diante de tamanha crise de identidade, nas minhas últimas viagens pelo app, dediquei-me então a fazer enquetes com os motoristas para saber o que acontece. E adivinha? Nem eles mesmos sabem. Houve quem dissesse que depende do humor do condutor, do time de futebol dele, do preço da gasolina, da fome que ele sente, do trânsito, enfim. Até que a plataforma decida os critérios de avaliação ou que eu mesma decida como lidar com o humor do condutor, o time de futebol dele, o preço da gasolina, a fome que ele sente ou o trânsito, nada está sob o meu controle.

Deixar de lado minhas caroninhas? Ainda não cheguei a este ponto. Mas, subitamente, nomes como “Santa Cândida/Capão Raso”, “Centenário/Campo Comprido” e “Inter 2” ganham uma “nova-antiga” aura especial. Num misto de saudosismo e empolgação, de repente a energia do transporte coletivo soa-me tão convidativa. Os avisos sonoros, as japonas coloridas no inverno, os trajetos conhecidos, o cheiro de salgadinho de cebola, a sensação de liberdade e a democracia mais sincera que Curitiba pode te oferecer: a de ser quem você quiser. Curitibano, paulistano, baiano, interiorano, com ou sem topete; sem que isso determine se você é nota cinco ou nota zero. E o melhor de tudo: VOCÊ come o SEU bombom e ainda fica sabendo da vida dos outros. Eu adoro!

Foto: SMCS
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