A ‘Vida dos Outros’ e a minha: que parou pra cuspir na minha cara

As coisas vão mudar. Elas vão melhorar. Minha hora vai chegar, eu sei. Os humilhados serão exaltados e, quando isso acontecer, meu amigo, você não perde por esperar. O apartamento bem iluminado, com mobília, cortinas harmoniosas, sacada art-nouveau e um difusor de luz colorida que solta cheiro de baunilha. Num bairro bem decente, com uma vizinhança simpática e um lindo vira-latas caramelo pra chamar de meu. Deus! Eu só precisava dessas coisas, pra ser 100% feliz.

A viagem dos sonhos, uma vez por ano para um paraíso tropical, com mar transparente, piscinas de borda infinita e banhos de loja de marca. Ah! Quando rolar, minha gente, quando acontecer, ninguém nesse mundo me segura! O emprego perfeito, de status e de salário bem gordo, com horário flexível. E, não menos importante, a tal da lipo led. Quando eu finalmente tiver a grana pra bancar minha lipo led… aí sim! Não vai ter pra ninguém! Aí sim! Eu serei completa! Aí sim! Serei a famosa, tão esperada, mais desejada minha “melhor versão”.

Às vezes, bem às vezes, parece que a minha hora finalmente chegou. Sabe quando o mundo aponta pra você e sinaliza, com faixa, luz, neon e até aqueles bastõezinhos alaranjados que os balizadores usam na pista do aeroporto, pra dizer: “pode vir! Agora é sua vez de decolar”? Pois é. Você manobra o jumbo feliz, confiante que finalmente chegou a sua hora. Mas aí você descobre que era tudo alarme falso e tira seu aviãozinho da chuva.

E, pior. Aparentemente, como não bastasse as coisas não darem certo pra você, magicamente, num nível quase fantástico, elas começam a dar incrivelmente certo pros outros. E quando eu digo incrivelmente certo, é porque o negócio chega a ser irônico. Parafraseando o David Sedaris, é quase como se a vida não estivesse só passando por mim, mas também como se ela tivesse feito uma pausa no caminho pra cuspir na minha cara.

É o Ferdinando que foi promovido àquele cargo que, segundo meu chefe, era questão de tempo até ser meu. A Mariazinha que conheceu um cara incrível, de cabeça boa, sem joguinhos, super família e desde o começo muito bem intencionado e que, em menos de dois anos, foi pedida em casamento num bistrôzinho argentino, de clima intimista, com janelas envidraçadas e astromélias no centro da mesa. É o Zezinho, sujeitinho mau caráter, virar milionário da noite pro dia.

Às vezes eu acho a “era 5G” um saco. Preferia mil vezes viver no tempo em que, pra saber da vida dos outros, você tinha que investigar. Tinha que “assuntar”. Esticar ouvido na conversa alheia no ônibus, se fazer de desentendido pra “pescar” uma coisa ou outra. Perguntar pro amigo do amigo como a história tinha acabado. Encostar a borda do copo atrás da porta.

Hoje ela, “A Vida dos Outros”, aparece sem que eu peça ou pergunte. Ela salta, pipoca, se esfrega na minha cara. Sem eu nem querer saber. Ela invade o meu horário de almoço pela janela indiscreta do celular, com fotos felizes na Disney, numa quinta-feira, em pleno horário comercial (depois eu não sei porque tenho dor de estômago). Ela interrompe a programação super necessária da TV aberta no domingo com boomerangs na beira da praia, me fazendo afundar ainda mais no sofá.  Ela vem me dar boa noite na penumbra do quarto, com a promoção para o emprego dos sonhos e acaba com o embalo do meu sono.

E nesse looping de olhar pra fora enquanto espero por aquilo que acredito ser o melhor no futuro, esqueço de olhar pra dentro e descobrir o que está dando certo agora. Nessa, de viver esperando que as coisas mudem, saboto os breves lapsos de felicidade projetando quando vai ser a próxima vez. Ou que “está bom, mas podia estar melhor”.

Esqueço que já passei por grandes enrascadas e que, de todas elas, saí. Salva. Não necessariamente sã. Já fiz festinha de aniversário em que não foi ninguém, já viajei em avião com turbulência de cair bagagem e tempestade com relâmpago do lado de fora, já estive em cama de hospital com doença grave, já fui demitida, já quebrei o cóccix, já tomei picada de aranha marrom, já quase morri umas cinco vezes. Já ouvi muitos nãos, já achei que o mundo era um conto de fadas, já tirei zero, já levei muito balão, já estive em frangalhos. Muitas vezes.

Mas não agora. Agora? Pode até ser que as coisas não estejam todo esse mar de rosas. Pode até ser que eu definitivamente não esteja na “minha melhor versão”. Pode até ser que a vida tenha feito uma pausa pra dar aquela cuspidinha na minha cara. Tô nem aí. Quem nunca? Importa que só uma pausa. E que logo, ela segue o curso independente “dA Vida dos Outros”. Importa que ela continua e, enquanto não estiver onde eu acho que tem que estar, vou procurar prestar mais atenção no meu sono, no meu estômago e, por que não, na programação super necessária da TV aberta de domingo.

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