Dona Pepita e sua nova paixão

Eu me lembro que Paloma Flores Gonzáles era uma espanhola bonita, morena de olhos verdes, que conheci há dez anos. Eu a chamaria de amiga. Ela conheceu um sujeito, casou e como acontece nestes casos, sumiu. Dia destes, ela me ligou. Perguntou se eu me lembrava dela. Eu disse que me lembrava, embora fossem necessárias algumas frases, locais e datas para polir a memória. Na realidade, de sem-pulo, não me lembrei. Ela disse que se divorciou, estava sozinha e me pediu para fazer uma visita ao seu apartamento no Cristo Rei. Ela queria me mostrar uma coisa.

Ela era bonita e, por mais cruel que o tempo fosse, não deve ter feito estrago naquele corpo ibérico. Mulher divorciada é livre. Fui ao apartamento na noite de quinta-feira com ideias preconcebidas. Apartamento bonito. Ao vê-la percebi que os anos foram generosos com Paloma. Quando a vi, uma melodia me veio à memória: “Aqueles olhos verdes, translúcidos e serenos, que pareciam dois amenos, pedaços do luar”. Entrei faceiro no apartamento e me deparei na sala com uma velha numa cadeira de rodas, com um pequeno cofre no colo, vendo na televisão o jogo do Atlético Paranaense contra o Internacional, em Novo Hamburgo.

Paloma disse: “Olha que graça!”. Por mais sensível que eu seja, não achei graça numa velha torcendo para o Furacão. Deduzi que torcia para o Atlético porque o pequeno cofre estava sobre a bandeira rubro-negra, no colo da velha. Meu idílio desmoronou. Ela me chamou para isso. Para ver uma velha vendo um jogo do Furacão. A velha nem piscava e apertava o cofre. Paloma disse para deixar a velha tranquila e ir para outro cômodo. Sem esperança, pensei se este cômodo era o quarto. Ela me levou para a cozinha. E disse: “Agora que você tem coluna no jornal, eu quero te contar uma história bonita”. Então era isso! Respirei fundo e disse: “Pode contar”.

Achei que seria bobagem. Não foi. A velha da sala era Dona Pepita, avó de Paloma, viúva de Pablo, espanhol que morou no Água Verde maior parte da vida. Era atleticano no Paraná e em Madri. Quando se aproximou de seus dias crepusculares, vendeu terreno no bairro e decretou: “Eu sou espanhol e quero morrer na Espanha”. Paloma e Dona Pepita concordaram. A velha foi com Pablo, que viveu alguns anos e morreu na Espanha. Antes de morrer, disse: “Eu sou espanhol, quero morrer e ser cremado na Espanha, mas leve minhas cinzas para o Brasil. Espalhe pelos bosques de Curitiba, cidade que eu amo”.

Promessa é dívida, a velha fez isto. Voltou, foi morar com Paloma, mas ficou com pena de espalhar as cinzas do velho. Não queria ficar sozinha. Achava que as cinzas de certa forma eram o velho – ou o que sobrou dele. E para dar vida às cinzas do velho, passou a fazer coisas que ele gostava, como ver os jogos do Atlético. E torcer. Justamente ela que não gostava de futebol. Dentro do cofre com as cinzas de Pablo, duas pequenas bandeiras: dos colchoneros e do rubro-negro. Paloma perguntou: “Você não acha fantástico?”. Eu respondi: “Sim. É fantástico”. Claro que era. O velho Pablo foi Atlético até depois da morte. E se a noite não foi de fortes emoções para o escriba, os próximos dias certamente serão para Dona Pepita aqui na terra e para o velho Pablo lá no céu, com Grêmio e Atletiba pela frente.