O século de Lula

Ivan Schmidt

O presidente Lula faz um governo de acertos razoáveis e equívocos rotundos, especialmente no aspecto social. Mas o discurso do trono continua apregoando como prioridade um o combate à fome. Não disse outra coisa o presidente nos fóruns de Porto Alegre e Davos, com o efêmero intervalo de uma noite na estreita cama do AeroLula, na travessia do Atlântico.

Não se pode dizer, entretanto, que falte ao presidente a boa intenção de acertar logo os ponteiros de sua administração e romper a inércia operacional de um aparato de servidores há muitos anos sem o menor estímulo para fazer da produtividade a principal ferramenta de trabalho e bandeira no momento de reivindicar melhorias.

O núcleo dirigente do governo ainda não conseguiu conhecer e tampouco dominar a máquina funcional, cujas ramificações burocráticas são de tal forma entremeadas que o próprio Kafka teria baldado o esforço de compreendê-la. Assim, o governo vai aos trancos e barrancos, impondo sua imagem corporativa porque desembarcou com força em setores vitais como a Fazenda, Casa Civil, Receita e Polícia Federal. Em outros setores, haja vista a recente tentativa, mal-sucedida, de intromissão na cultura interna do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a influência do governo como agente modificador de condutas e intenções, é extremamente diáfana.

Ao contrário de ser um defeito do presidente Lula, deve-se afirmar em sua defesa que o gigantismo da máquina pública torna deveras desgastante a tarefa de ajustar e dirigir as ações programáticas para o alcance das metas. Um bom exemplo continua sendo o Fome Zero, sufocado nos escaninhos de uma burocracia estupidificante e insensível. O gesto condoreiro de Lula, ao passar ao ministro José Dirceu a braçadeira de capitão do time, investindo-o da função de coordenar e cobrar a execução das ações governamentais, também teve curta duração.

A coordenação pensada pelo presidente, uma espécie de rede de condutos pela qual o "espírito" de reconstrução política e social do País, segundo o modelo petista, irrigasse de entusiasmo o organismo governamental, por escopo, deveria não apenas sobrepor-se, mas cortar a corrente alimentadora da viciada malha do funcionalismo e, enfim, arrasar as sacristias onde historicamente se conspira contra o governo.

Na verdade, este também não é defeito a se atribuir com exclusividade ao corpo funcional pelo simples gosto de criar obstáculos. Foram tantos os anos de desatenção e desprezo aos que fazem o cotidiano da administração, não raro maltratados e difamados por gestores frustrantes e políticos sem compostura, que o resultado não podia ser diferente. Não há política clara e adequada para as carreiras no serviço público em nenhuma esfera de governo, com raríssimas exceções. Normal é tratar o servidor público como um ser desprezível, beneficiário de suspeito apadrinhamento político ou do nepotismo declarado.

Esta, infelizmente, é uma parte da verdade. O serviço público foi transformado em reserva de domínio pelos que vêem a política como facilitário para a nomeação de parentes, apaniguados e cabos eleitorais. Não se exige nada mais do servidor além do "carimbo" de que ali está pelos bons ofícios do benefactor aliado do poder. Não se espera dessa gama de servidores, muitas vezes sem a mínima consciência de onde está ou o que precisa ser feito, a mais débil contribuição. A outra parte é realizada pelos servidores de carreira habituados a carregar o piano, por isso mesmo motivo de zombaria por parte dos aproveitadores.

Admitida a dificuldade de gerir máquina insubmissa e indolente, o presidente administra o todo a partir de pequeno grupo de auxiliares pessoais, espargindo medidas destinadas a regular a vida da coletividade cuja essência vem de concepção ou veleidade individual. Por isso, a maioria dessas determinações esbarra na força inercial da administração pública ou simplesmente é rejeitada pela antipatia popular.

Na terça-feira, o presidente Lula cometeu mais um de seus ditos geniais: o século XXI será o século do Brasil, como o século XX foi dos Estados Unidos e o XIX da Europa. O complicador é que os brasileiros anseiam ver resolvidos, ao menos, os problemas mais angustiantes, se possível ainda este ano.

O premonitório raciocínio presidencial – nossos netos e bisnetos agradecem – traz-nos à mente a reflexão de lorde Keynes quanto ao exíguo espaço dos cemitérios para armazenar tantas e tão boas intenções. Senhor presidente, a hora é agora.

Ivan Schmidt é jornalista.