Defesa da saúde do povo

Edson de Oliveira Andrade

Muitas bobagens têm sido propaladas acerca do projeto de lei que regulamenta os atos médicos. As mais recentes foram publicadas no jornal O Globo pelo médico Aloísio Campos da Paz, da rede Sarah. Antes de mais nada, é preciso esclarecer que todas as profissões da área da saúde têm sua regulamentação em lei, exceto a medicina. Isso, em tese, deve-se ao fato de todo mundo saber o que o médico faz, e os legisladores nunca se preocuparam com a matéria. No entanto, justamente devido à evolução do conhecimento científico e a complexidade cada vez maior da atenção à saúde, tal legislação hoje é necessária.

O projeto de lei diz, em cinco artigos, que só o médico, ressalvado o odontólogo, tem a competência profissional para diagnosticar as doenças e prescrever o tratamento para os doentes. Nada além do óbvio. A atenção à saúde é obrigatoriamente praticada por equipe multiprofissional, pois ninguém a realiza sozinho. Cada profissão tem sua atribuição definida em lei, e nenhum outro profissional diagnostica doenças e indica o respectivo tratamento. O psicólogo faz a avaliação psicológica, o fisioterapeuta faz a avaliação cinésio-funcional, o enfermeiro a de enfermagem e todos tratam dos pacientes de acordo com suas capacidades e com absoluta autonomia dentro das prerrogativas estabelecidas em suas leis.

Dizer que todos os profissionais se subordinariam aos médicos após a aprovação da lei do ato médico é uma aleivosia. Só por desconhecimento ou má-fé pode-se disseminar a inverdade que, para ir ao dentista ou a um psicólogo, precisaria antes do aval de um médico. Propagam tais inverdades aqueles interessados na não-regulamentação da medicina, que preferem manter uma área cinzenta de interface entre as profissões, abrindo caminho para o exercício ilegal da profissão e o charlatanismo.

Quando o projeto de lei prevê que só um médico pode chefiar serviços médicos, não preconiza a subordinação de outros profissionais aos médicos. Significa que os serviços de cirurgia, ginecologia, cardiologia e tantos outros, onde se praticam atos médicos, têm que ter um responsável técnico médico, que responda por eles. Estes são os responsáveis perante os conselhos de medicina, e são interpelados quando ocorrem denúncias envolvendo médicos. Os serviços de enfermagem, de nutrição, de fonoaudiologia, entre outros, são e serão sempre dirigidos pelos respectivos profissionais, como rezam as leis de cada um. Os médicos não querem, e nem podem, chefiá-los. Da mesma forma, a direção geral de uma instituição de saúde, ou uma secretaria, ou um ministério, que não requerem formação médica específica, poderão ser dirigidos por qualquer profissional (os dois últimos ministros da Saúde são economistas), desde que tenham médicos respondendo pelos atos médicos, como exige a legislação atual.

No calor dos debates que vêm acontecendo, ainda longe dos olhos e ouvidos da população brasileira, a principal interessada, o que a lei do ato médico vai coibir, de verdade, é a tentativa deliberada de promover uma assistência à saúde sem médicos habilitados, mais barata por certo, mas com riscos à vida dos pacientes e aos profissionais que se arriscam a substituí-los.

As chamadas casas de parto são exemplos dessas ações. Criadas para acompanhar os partos ditos normais e "humanizar" a parição, estas sim retrocedem ao século passado na assistência à gestante. As complicações de um parto, quando acontecem, são de tal ordem dramáticas que se o médico não estiver presente e com recursos adequados, não há tempo para salvar as vidas da mãe e da criança. Mas não são as únicas aberrações. O Programa de Saúde da Família também precisa ser revisto quanto à composição de equipes sem médicos para atendimento à população. E ainda são muitas as secretarias e postos de saúde sem diretor médico pelo Brasil afora. Uma instituição de saúde sem um responsável técnico médico funciona ao arrepio da lei.

Conceber uma medicina sem médicos não é um debate acadêmico. É a aplicação acrítica do receituário neoliberal do Banco Mundial.

Desvirtuar o conceito de equipe é essencial para aviar essa receita. Ao invés de reunir os saberes e práticas de cada profissional em benefício da população, misturam-se esses ingredientes em receitas práticas capazes de serem aplicadas por qualquer um de seus membros. Em breve teríamos profissionais de saúde "multifunção", que sabem um pouco de enfermagem, de nutrição, de medicina, etc., o suficiente para implementar uma assistência à saúde de segunda para gente de segunda. Fato eticamente inaceitável.

Some-se a tudo isso a crônica escassez de recursos para a saúde, e teremos um retrato fiel do que vem ocorrendo. Disso, aliás, o médico Aloísio Campos da Paz não pode se queixar. Há muitos anos, e há vários governos, a rede Sarah é beneficiada com um aporte de recursos diferenciado, à parte dos demais hospitais do Ministério da Saúde. Pelo site oficial do ministério podemos ver que a rede Sarah recebeu sozinha, em 2003, 245 milhões de reais, contra 207 milhões para todos os hospitais próprios. Sem dúvida, esse é um fator determinante para a excelência dos serviços prestados pela rede, e que bom seria se todos os gestores da saúde no País tivessem o mesmo tratamento.

É preciso deter esse iceberg, cuja parte submersa revela uma perspectiva cruel e sombria para a saúde pública brasileira. A regulamentação em lei dos atos médicos constitui apenas um primeiro passo, mas que ajuda ao explicitar as ações que só esse profissional pode executar, devidamente habilitado, fiscalizado e capaz de assumir os riscos pelas decisões que venha a tomar. Temos consciência de que nenhum profissional atua sozinho na assistência à saúde, mas temos também a certeza de que não se faz saúde sem médicos.

Aprovar o PL 25 (Lei do Ato Médico) é antes de tudo um ato de cidadania. Um gesto de respeito às pessoas.

Edson de Oliveira Andrade é presidente do Conselho Federal de Medicina.