A água começa a ferver

Gaudêncio Torquato

As críticas do presidente Lula às elites nacionais, de tão recorrentes, se perdem no cipoal das banalidades discursivas presidenciais. E mais: revela a intenção do mandatário-mor de se escudar na sombra de um populismo que se mostra tão extemporâneo quanto obsoleto, principalmente por evocar a velha luta de classes, que nem mais memória recupera nos salões atapetados do PT e adjacências. Que monumental sandice é dizer que as pessoas "do andar de cima" não querem que "os pobres melhorem de vida".

Caprichar no verbo contra "os do andar de cima" tem sido a senha para ganhar aplausos dos que habitam o "andar debaixo" ou atenuar apupos de quem o vê comprometido com as causas dos mais ricos. Não por acaso, joga confetes aos "amigos" do MST, "um dos movimentos mais sérios e mais respeitados do País", escracha a imprensa por ser dura com o governo e bate forte nos antecessores. Mas a virulência das falas presidenciais tem outro alvo: o projeto de reeleição.

Cumprindo o ritual, retoma o lugar no palanque, refulge como ácido crítico do "establisment" ("o fato de estarem acampados aqui não é culpa de vocês, é de uma estrutura", em discurso para o MST, na Bahia), refaz pontes com as massas, ataca adversários e "oportunistas", ameaça o empresariado com o aumento de importações e destaca a "melhor fase do País na credibilidade internacional", imbricando fios de diferentes cores para ocupar espaços e encobrir buracos da administração.

Há momentos em que Lula, de tão contundente, parece não ser governo. A estratégia, convenhamos, é inteligente, porque sensibiliza bolsões carentes que continuam a vê-lo como "pai dos pobres e oprimidos" e a considerá-lo um lutador, que só não realiza mais porque outros não deixam. Nisso reside o efeito mágico. O perfil do governante se isola do perfil do governo, propiciando uma alquimia cognitiva das mais incríveis: Lula acaba sendo o maior crítico da situação social, o que inclui seu próprio governo, ganhando, com o jeito quixotesco, o endosso das margens sociais abandonadas. Na engrenagem lulista falta, porém, uma peça. Mais precisamente, um eixo central. Que agrega a capacidade de parar ou mover a engrenagem. O eixo é a classe média, com seu poder de criar eco. Marta Suplicy, em São Paulo, tentou jogar diretamente com as pontas, mas esqueceu que a bola passa pelo centro da quadra antes de chegar às margens do campo.

Agora, um exame de dados e fatos. Pesquisa feita pelo Instituto de Economia da Unicamp mostra que as classes médias têm encolhido no País. Só no primeiro ano do governo Lula, os índices de retração foram de 14,6% na classe média alta (renda familiar acima de R$ 5 mil), 6,9% na classe média (renda entre R$ 2,5 mil e R$ 5 mil) e 3,83% na classe média baixa (renda entre R$ 1 mil e R$ 2,5 mil). O baque foi comparável aos tempos perversos do confisco do governo Collor. Sob esse pano de fundo, a administração federal impõe uma medida provisória para castigar o setor de serviços, comprimindo orçamentos de contingentes abrigados nas classes médias. Daí a grita que se está formando em todo o território. Forma-se a maior corrente de mobilização social da contemporaneidade contra a voracidade fiscal do governo Lula. Empresários, trabalhadores, formadores de opinião, núcleos organizados iniciam um mutirão contra a carga tributária, que beira os 40% do PIB.

O centro da quadra poderá atrapalhar as jogadas do candidato à reeleição. Mas ele não percebe. Aos perfis auto-suficientes, envolvidos pela aura da onipotência (o presidente está convencido de que está mudando a agenda mundial), um espelho de Narciso basta. O que Fernando Henrique pretendeu quando pediu que Lula leia mais? Talvez ajudá-lo a entender que a História pode ajudar os governantes a ter mais cuidado. Pequena leitura: a derrama, a cobrança forçada do pagamento mínimo de cem abonos de ouro pela Coroa portuguesa à colônia, foi o estopim para a Conjuração Mineira, que germinou a independência do Brasil. Ou, ainda, a Revolução Americana (1776-1783) deu-se porque, entre outros motivos, a Inglaterra decidiu cobrar mais impostos, onerando violentamente os colonos. Na Revolução Francesa, injustiças e impostos abusivos funcionaram como alavanca de motins.

Uma fábula antiga conta que, ofendido porque a água na panela está acima dele, o fogo, considerando-se elemento mais forte, ergue alto suas chamas. Mas não mede as conseqüências. As chamas provocam a ebulição da água, que, transbordando da panela, extingue o fogo. "Esquentando" o País com falas que evocam a luta de classes, Lula mais parece o fogo da fábula. Talvez ele conheça a lição de um ex-presidente dos EUA, filho de paupérrimos lavradores, Abraham Lincoln, que, um dia, disse: "Não fortalecerás os fracos enfraquecendo os fortes; não ajudarás os pobres eliminando os ricos; não ajudarás o assalariado arruinando aqueles que pagam". A derrama no Brasil contemporâneo confisca parcela dos recursos dos que pagam. O candidato à reeleição Luiz Inácio Lula da Silva parece impermeável ao arrocho. Do alto de sua impavidez, não percebe que a água começa a entrar em ebulição na panela das classes médias.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor-titular da USP e consultor político.