ADOÇÃO À BRASILEIRA

 

            Com a despatrimonialização do Direito Civil, as relações de afeto, especialmente no campo do Direito de Família, tomam maior relevância na constituição do novel modelo de família contemporânea, cujo cerne que a embasa é justamente o afeto.

            Ocorre que o afeto, fundamento da família, não brota tão somente da relação biológica entre as pessoas, ou seja, dos laços sanguíneos, mas, também e principalmente, nasce da convivência familiar.

            Por conseguinte, diversas situações surgem e se contrapõem à família tradicional, devendo ser igualmente protegidas pelo direito, em nome do princípio da dignidade da pessoa humana.

            Neste sentido, destacam-se os casos de adoção à brasileira:

PROPOSIÇÃO: Constatada a adoção à brasileira, em que se averigua a posse do estado de filho, prevalece a relação sócio-afetiva em detrimento da biológica.

JUTISFICATIVA: O art. 1.593 do Código Civil dispõe que o “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem.” Observa-se, assim, que o ordenamento jurídico busca salvaguardar tanto as relações biológicas, quanto as chamadas sócio-afetivas, diante da posse do estado de filho. Tal raciocínio deriva, ainda, do disposto no art. 227 da Constituição da República, que enfatiza os princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da personalidade e da proteção integral da criança e adolescente, a partir do convívio familiar. Seguindo estes preceitos, tanto a doutrina quanto a jurisprudência reconhecem a filiação sócio-afetiva como uma relação jurídica de afeto e a inserem no conceito de “adoção à brasileira”, que se dá nos casos em que terceiros registram a criança como se filho biológico seu fosse, por assim entenderem ser do melhor interesse dela (criança/adolescente), destinando-lhe afeto, educação e cuidados comuns e inerentes à relação entre pais e filhos (posse do estado de filho), ainda que não possuam laços sanguíneos. Tal questão, inclusive, é objeto da Proposição n.º 256 da Terceira Jornada de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal: “A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil”. Para salvaguardar a unidade familiar, quando inexistente qualquer vício de vontade dos pais no momento do registro do sujeito “adotado”, bem como demonstrado o tratamento entre eles como uma família propriamente dita (pai e/ou mãe, filhos e irmãos) – tractio – e assim reconhecida pelas demais pessoas – reputatio -, inclusive com o nome da família – nominatio -, deve prevalecer a situação sócio-afetiva em detrimento da verdade biológica, não se reconhecendo nulidade do respectivo assentamento civil se este representar aquela.

Acerca do tema, são as autorizadas palavras de LUIZ EDSON FACHIN:

Se o liame biológico que liga um pai a seu filho é um dado, a paternidade pode exigir mais do que apenas laços de sangue. Afirma-se aí a paternidade socioafetiva que se capta juridicamente na expressão da posse do estado de filho. Embora não seja imprescindível o chamamento de filho, os cuidados na alimentação e instrução, o carinho no tratamento, quer em público, quer na intimidade do lar, revelam no comportamento a base da paternidade. A verdade sociológica da filiação se constrói. Essa dimensão da relação paterno-filial não se explica apenas na descendência genética, que deveria pressupor aquela e serem coincidentes. Apresenta-se então a paternidade como aquela que, fruto do nascimento mais emocional e menos fisiológico, reside antes no serviço e amor que na procriação.”

(Da paternidade relação biológica e afetiva, Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 36-37)

Seguindo a mesma linha de raciocínio, é a doutrina de FABÍOLA SANTOS DE ALBUQUERQUE:

 “a desconstituição do registro civil de uma relação já consolidada no tempo acarretará muito mais danos que benefícios aos envolvidos. Importa na vitória da desconsideração e do desprezo à segurança jurídica das relações familiares. (…) a desconstituição do registro civil colide frontalmente com a tábua axiológica e principiológica do melhor interesse da criança, da convivência familiar, do direito a um ninho (lar) e da paternidade responsável.

(In PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord). Família e dignidade humana – V Congresso Brasileiro de Direito de Família. São Paulo: IOB Thompson, 2006, p. 362)

(TJPR – Ap. Cív. n.º 454.064-3; 399.006-1; 642.806-4; 653.535-7; 698.820-3; 716.190-0)

 

DECISÃO EM DESTAQUE

 

Bem trabalhando com os termos acima citados, é o acórdão a seguir transcrito, publicado em 16 de dezembro de 2010:

APELAÇÃO CÍVEL Nº 653.535-7, DA TERCEIRA VARA DE FAMÍLIA DO FORO CENTRAL DA COMARCA DA REGIÃO METROPOLITANA DE CURITIBA

APELANTE: C. E. DA R. S.

APELADA:    H. DA S.

RELATORA: DES.ª VILMA RÉGIA RAMOS DE REZENDE

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE PATERNIDADE E MATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA C/C PEDIDO DE RECONHECIMENTO DE DIREITO À SUCESSÃO. ART. 1.593 DO CC. AMPLO CONJUNTO FÁTICO PROBATÓRIO A DEMONSTRAR A EXISTÊNCIA DA RELAÇÃO PATERNO/MATERNO-FILIAL. POSSE DO ESTADO DE FILHO. PREVALÊNCIA SOBRE O VÍNCULO BIOLÓGICO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ART. 1º, INC. III, DA CF.

Imperioso o reconhecimento do vínculo sócio-afetivo existente desde a tenra idade da filha, em detrimento do vínculo biológico, quando claramente constatada a posse do estado de filho entre a Apelada e os de cujus, que a reconheciam como tal e destinaram-lhe afeto e todos os cuidados referentes às relações entre pais e filhos, pena de afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, do Constituição da República) e ao disposto no art. 1.593 do Código Civil.

RECURSO DESPROVIDO.

VISTOS, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n.º 653.535-7, oriundos da Terceira Vara de Família do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, distribuídos a esta Décima Primeira Câmara Cível do TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ, em que figura como Apelante C. E. DA R. S. e como Apelado H. DA S.

I – RELATÓRIO

Trata-se de Apelação Cível interposta contra a sentença (fls. 127/137), proferida nos autos de Ação Declaratória de Paternidade e Maternidade Sócio-afetiva c/c Pedido de Reconhecimento de Direito à Sucessão n.º 298/2005, em trâmite perante a Terceira Vara de Família do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, proposta por H. DA S. em face de C. E. DA R. S., que a julgou procedente, declarando ser F. A. C. e D. C. DA R. C. pais de H. DA S., ante sua filiação sócio-afetiva, alterando, ainda, seu nome para H. DA R. C. Deixou, entretanto, de apreciar acerca do direito de sucessão. Por fim, condenou a parte ré ao pagamento de custas processuais e honorários advocatícios, estes fixados em R$ 750,00 (setecentos e cinquenta reais), alertando ao disposto no art. 12 da Lei n.º 1.060/50.

C. E. DA R. S. interpôs recurso de Apelação (fls. 141/148), sustentando, em síntese, que:

a)    a relação entre a autora e os de cujus não comprova a intenção destes em adotá-la, uma vez que inexistia impedimento para tanto;

b)   os de cujus não tinham intenção de deixar bens à Apelada;

c)    a aplicabilidade da lei vigente é relativa, posto que a convivência entre a autora e os de cujus se deu, em maior parte, na vigência do Código Civil de 1916;

d)   havia vínculo com o pai biológico, eis que a Apelada a ele se dirigiu para solicitar autorização para seu matrimônio quando possuía 15 anos de idade;

e)    não houve a dependência da Apelada para com os de cujus, posto que esta permaneceu casada por 12 anos, voltando a residir com D. C. DA R. C. ante seu ato de solidariedade, não demonstrando interesse em ser adotada, pois voltou a utilizar seu nome de solteira;

f)     a dominância do  vínculo sócio-afetivo sobre o biológico não deve ser regra, pena de ofensa aos usos e costumes de 40 (quarenta) anos atrás.

Recurso recebido em ambos os efeitos (fl. 149) e contra-arrazoado (fls. 150/157).

A douta representante do Ministério Público em Primeiro Grau, Promotora VIVIAN PATRÍCIA FORTUNATO, opinou pelo conhecimento e desprovimento do recurso (fls. 158/165). No mesmo sentido manifestou-se o douto Procurador de Justiça JOSÉ DELIBERADOR NETO (fls. 175/185).

É o relatório.

II – FUNDAMENTAÇÃO

Presentes os pressupostos recursais, conheço do recurso.

Primeiramente, cumpre destacar que o Juízo de primeiro grau deixou de apreciar o pedido de reconhecimento dos direitos sucessórios pretendidos pela Apelada, inexistido insurgência por parte dela sobre tal entendimento, razão pela qual se restringe a controvérsia tão somente no reconhecimento de paternidade e maternidade sócio-afetiva entre F. A. C. e D. C. DA R. C. em face de H. DA S.

Feita tal consideração inicial, as demais conclusões frente às teses apresentadas pela Apelante devem derivar do disposto no art. 1.593 do Código Civil:

O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem.

Observa-se, assim, que o ordenamento jurídico busca salvaguardar tanto as relações biológicas, quanto as chamadas sócio-afetivas, diante da posse do estado de filho.

Tanto a doutrina quanto a jurisprudência, reconhecem a filiação sócio-afetiva como uma relação jurídica de afeto, em que o aspecto biológico é ignorado e os pais “adotivos” criam uma criança por assim entenderem ser de seu melhor interesse, destinando-lhe afeto, educação e cuidados comuns e inerentes à relação entre pais e filhos, ainda que não possuam laços sanguíneos.

A título de ilustração, são as autorizadas palavras de LUIZ EDSON FACHIN:

Se o liame biológico que liga um pai a seu filho é um dado, a paternidade pode exigir mais do que apenas laços de sangue. Afirma-se aí a paternidade socioafetiva que se capta juridicamente na expressão da posse do estado de filho. Embora não seja imprescindível o chamamento de filho, os cuidados na alimentação e instrução, o carinho no tratamento, quer em público, quer na intimidade do lar, revelam no comportamento a base da paternidade. A verdade sociológica da filiação se constrói. Essa dimensão da relação paterno-filial não se explica apenas na descendência genética, que deveria pressupor aquela e serem coincidentes. Apresenta-se então a paternidade como aquela que, fruto do nascimento mais emocional e menos fisiológico, reside antes no serviço e amor que na procriação.” [grifamos]

(Da paternidade relação biológica e afetiva, Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 36-37)

No presente caso, poder-se-ia afirmar a existência de “adoção à brasileira”, muito embora o registro de nascimento da Apelada conste como seus legítimos pais os biológicos, eis que da detida análise dos autos, depreende-se o reconhecimento voluntário da maternidade e paternidade de F. A. C. e D. C. DA R. C., que, não se atentando às exigências legais pertinentes à adoção, acabaram por criar a Apelada como se filha fosse, sem as devidas exigências judiciais determinadas pelo Estado quanto ao seu procedimento.

Vejamos os depoimentos das testemunhas e da própria parte ré:

(…) a autora foi criada pelos Srs. F. e D. desde os dez meses de idade; que após o falecimento da mãe biológica da requerente, ela foi entregue pelo pai biológico para o marido da depoente, para que a família com ela permanecesse; que a depoente, porque já tinha outros dois filhos, solicitou que o Sr. F. e a Sra. D. ficassem com a menina; que o pai biológico da autora, Sr. E., se recusou a formalizar a entrega da filha para a Sra. D. e o Sr. F. por motivo que a depoente desconhece; que o Sr. E. nunca teve contato com a filha biológica; que a autora chamava a Sra. D. de mãe; (…) que a autora permaneceu com a Sra. D. até o falecimento dela; que a Sra. D. comentava com a depoente que iria deixar por escrito a transferência de seus bens para a autora na hipótese de falecimento. (…)” [grifamos]

(Depoimento de C. E. DA R. S. – fl. 84)

que conheceu os Srs. F. e D. há aproximadamente quarenta e dois anos; que na ocasião em que os conheceu, a requerente com eles já morava; que a autora morava com os Srs. F. e D. na qualidade de filha, inclusive tratando-os de pai e mãe; que a depoente viu uma única vez o pai biológico da requerente, esclarecendo que não havia convívio entre eles; (…) que a requerente permaneceu na companhia dos pais adotivos até os seus falecimentos. (…) que a autora cuidou da Sra. D. em todo o período em que esteve doente; (…) que a Sra. D. a sempre mencionou que iria deixar os bens para a autora ‘porque era a filha que ela tinha’ (…).” [grifamos]

(Depoimento da 1ª testemunha – fl. 85)

que a informante sempre conviveu com os Srs. F. e D., esclarecendo que tratavam a autora como filha; que nunca formalizaram a adoção da requerente porque imaginavam que seria desnecessário; (…) que tanto o Sr. F. quanto a Sra. D. mencionavam que era do desejo de ambos deixar os bens para a autora, para que ela não perecesse. (…)” [grifamos]

(Depoimento da 2ª testemunha – fl. 86)

Depreende-se de tais testemunhos que realmente existia um forte vínculo sócio-afetivo entre a Apelada e os de cujus, formando estes uma verdadeira família bem demarcada pelo papel de cada um de seus integrantes: mãe, pai e filha.

Outra não é a conclusão, senão do reconhecimento da maternidade e paternidade sócio-afetiva, até porque, a participação do pai biológico na vida da Apelada foi diminuta, apresentando-se irrelevante o fato de ter buscado-o para solicitar autorização para o seu casamento quando possuía 15 (quinze) anos de idade.

Corroborando, resta bem evidenciado em todos os depoimentos que tanto F. A. C., bem como D. C. DA R. C. manifestavam interesse de deixar seus bens à Apelada, pois a tinham como sua filha.

Compartilhando do mesmo entendimento, foram os pareceres dos representantes do Ministério Público nas duas instâncias:

(…) a r. sentença atacada foi lastreada no farto conjunto probatório que atesta que a apelada sempre foi tratada pelo casal F. e D. como filha. Sempre foi reconhecida pelo meio social em que estava inserida como filha deste casal e se comportou como tal ao permanecer ao lado de seus pai até o falecimento destes.

A intenção do casal em acolher a apelada como sua filha legítima sempre foi muito clara conforme se depreende do relato das testemunhas ouvidas perante o juízo ‘a quo’ e mesmo das declarações da própria apelante que não teve como negar que a relação da apelada com o falecido casal sempre se revestiu de todas as características de uma relação entre pais e filha.

O vínculo sócio-afetivo é o que realmente importa para a formação de um ser humano e a apelada teve no casal F. e D., sem sombra de dúvida, seus verdadeiros pais.” [grifamos]

(Parecer da Promotora de Justiça VIVIAN PATRÍCIA FORTUNATO- fl. 63)

Resta suficientemente comprovado, como observado pela sentença apelada, que estão presentes no caso todos os pressupostos necessários a se admitir a existência da posse do estado de filho que permite o reconhecimento do vínculo sócioafetivo, qual sejam, nome (nominatio), o trato (tractatus) e a fama (reputatio). H. foi considerada e cuidada por D. e F. como se filha fosse desde tenra idade e sempre foi conhecida em sociedade como filha do casal.” [grifamos]

(Parecer do Procurador de Justiça JOSÉ DELIBERADOR NETO – fl. 183)

Logo, deixar de constatar o referido vínculo revelar-se-ia como ofensa drástica ao princípio da dignidade da pessoa humana, esculpido no art. 1º, inc. III, da Constituição da República, afastando-se, por consequência, uma verdadeira relação paterno/materno-filial que perdura desde a tenra idade da Apelada, percorrendo toda sua existência, ou seja, cerca de 50 anos.

Portanto, deve ser mantida a decisão a quo em sua integralidade e pelos seus próprios fundamentos.

III – DISPOSITIVO

Diante do exposto, ACORDAM os Julgadores integrantes da Décima Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, em NEGAR PROVIMENTO ao Recurso de Apelação, nos termos da fundamentação.

Participaram do julgamento e acompanharam a relatora o Desembargador AUGUSTO LOPES CORTES e MENDONÇA DE ANUNCIAÇÃO.

Curitiba, 01 de dezembro de 2010.

 Vilma Régia Ramos de Rezende

DESEMBARGADORA RELATORA                   RTR

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