Perícia produzida por profissional vinculado ao MP: prova ilícita

 

            O Superior Tribunal de Justiça proferiu acórdão em habeas corpus declarando ilícita, por violação a princípios constitucionais, uma prova técnica que, em ação penal pública, não foi realizada por perito oficial, mas por profissional que compõe os quadros do Ministério Público. Veja-se a ementa:

“HABEAS CORPUS. CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA, LAVAGEM DE DINHEIRO E QUADRILHA. LAUDO DE CRIPTOANÁLISE PRODUZIDO POR PROFISSIONAL LIGADO AO MINISTÉRIO PÚBLICO. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA, BEM COMO DE DISPOSITIVOS DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. PROVA ILÍCITA. CONCESSÃO DA ORDEM.

1. Entende-se por perito oficial aquele investido no cargo criado por lei, caracterizando-se como auxiliar da justiça e submetendo-se, inclusive, às mesmas causas de suspeição e impedimento do magistrado.

2. Na hipótese vertente, conquanto o laudo pericial tenha sido elaborado por servidora pública, verifica-se que ela compunha o quadro de pessoal do Ministério Público Estadual, não atuando em órgão do Estado destinado exclusivamente à produção de perícias.

3. Assim, o exame questionado foi realizado, a pedido da Promotoria de Justiça que atua no feito, dentre o da própria estrutura do Parquet, por meio do Grupo de Apoio técnico Especializado, do qual a perita fazia parte, a despeito de qualquer ordem, autorização ou controle judicial.

4. O Ministério Público é parte no processo penal, e embora seja entidade vocacionada à defesa da ordem jurídica, representando a sociedade como um todo, não atua de forma imparcial no âmbito penal, de modo que é inconcebível admitir como prova técnica oficial um laudo que emanou exclusivamente de órgão que atua como parte acusadora no processo criminal, sem qualquer tipo de controle judicial ou de participação da defesa sob pena de ofensa aos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

5. A corroborar este entendimento, o artigo 276 do Código de Processo Penal é claro ao assentar a impossibilidade de interferência das partes no que diz respeito à indicação do perito.

6. O caso dos autos não comporta, ainda, a afirmação de que a perícia seria urgente, o que poderia legitimar a sua realização por técnica vinculada ao órgão de acusação, uma vez que se trata de perícia realizada no curso da ação penal, merecendo destaque o fato de que a agenda apreendida foi entregue à Delegacia de Polícia Fazendária sem que se requeresse ao magistrado responsável pelo feito a efetivação de qualquer exame técnico no documento.

7. Registre-se que a denúncia foi ofertada pelo órgão ministerial em 12.11.2077, recebida pelo Juízo em 13.03.2007, e a perícia reputada ilícita realizada em 19.04.2008.

8. Não há que se falar, portanto, em contraditório diferido, uma vez que, por óbvio, não se trata de perícia feita durante a fase policial – que sequer ocorreu no caso dos autos, já que a ação penal foi deflagrada a partir de procedimento investigatório conduzido pelo órgão ministerial -, tampouco de situação em que haveria urgência diante do risco de desaparecimento dos sinais do crime, ou pela impossibilidade ou dificuldade de conservação do material a ser examinado, pois, como visto, cuida-se de criptoanálise de uma agenda apreendida em poder de um dos acusados já no curso do processo criminal.

9. Restam prejudicadas as alegações segundo as quais haveria impedimento da técnica que elaborou o laudo em discussão, que também seria nulo porque realizado por apenas uma perita, uma vez que, conforme já ressaltado, não se tem, no caso vertente, perícia oficial.

10. Ordem concedida para reconhecer a ilicitude do laudo pericial de criptoanálise realizado de forma unilateral pelo Ministério Público, determinando-se o seu desentranhamento dos autos.”

(STJ – HC 154093/RJ – 5.ª T. – Rel. Min. Jorge Mussi – DJe de 15.4.11)

 

O voto do eminente relator, Min. Jorge Mussi, expõe mais fundamentos:

“Em 19.05.2008, já estando em curso a ação penal instaurada contra o paciente e demais corréus, o órgão ministerial pleiteou a juntada aos autos de laudo pericial de criptoanálise de agenda apreendida com o ora paciente (fl. 235), exame realizado pela técnica pericial Maria do Carmo Gargaglione, servidora que atua no Grupo de Apoio Técnico Especializado do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. (…)

No presente habeas corpus alega-se a ilicitude do laudo pericial de criptoanálise pelos seguintes fundamentos: realização do exame por profissional ligado ao órgão acusador e sem a participação do réu ou do magistrado, em flagrante violação dos princípios do contraditório e da ampla defesa; inexistência, no caso, de situação que implicasse a necessidade de contraditório diferido; obrigatoriedade de participação da defesa na elaboração do laudo, oferecendo quesitos e nomeando assistente técnico; impedimento da perita técnica, pois teria participado da degravação de interceptação telefônica realizada no âmbito da mesma operação, o que contaminaria a prova; e violação ao artigo 276 do Código de Processo Penal, pois a nomeação do perito não deve sofrer interferência das partes, assinalando que a subscritora do laudo, uma vez compondo o quadro profissional do próprio autor da ação, não agiria com a isenção ou imparcialidade exigidas pela lei. (…)

Para solucionar a controvérsia acerca da licitude ou não da perícia ora impugnada, é preciso esclarecer, em primeiro lugar, que embora a referida prova tenha sido produzida na vigência do artigo 159 do Código de Processo Penal com a redação dada pela Lei 8.862⁄1994, tanto o texto anterior quanto o atual, posterior ao advento da Lei 11.690⁄2008, exigem que a perícia seja feita por perito oficial, distinguindo-se apenas quanto à quantidade de técnicos necessária para a realização dos exames. Entende-se por perito oficial aquele investido no cargo por lei, caracterizando-se como auxiliar da justiça, submetendo-se, inclusive, às mesmas causas de suspeição e impedimento do magistrado. (…)

Na hipótese vertente, conquanto o laudo pericial tenha sido elaborado por servidora pública investida no cargo por lei, verifica-se que ela compunha o quadro de pessoal do Ministério Público Estadual, não atuando em órgão do Estado destinado exclusivamente à produção de perícias. Assim, o exame questionado foi realizado, a pedido da Promotoria de Justiça que atua no feito, dentro da própria estrutura do Parquet, por meio do Grupo de Apoio Técnico Especializado, do qual a perita fazia parte, a despeito de qualquer ordem, autorização ou controle judicial. Ora, não se pode considerar como oficial uma perícia implementada nesses moldes, ao arrepio dos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Há que se ter presente que o Ministério Público é parte no processo penal, e embora seja entidade vocacionada à defesa da ordem jurídica, representando a sociedade como um todo, não atua de forma imparcial no âmbito penal. Apesar de não se desconhecer a existência de discussão doutrinária acerca da natureza jurídica do Parquet na seara criminal, a posição que mais se coaduna com a realidade do processo penal brasileiro é que defende que o citado órgão é parte parcial na ação penal. (…)

Nessa ordem de ideias, é inconcebível admitir como prova técnica oficial um laudo que emanou exclusivamente de órgão que atua como parte acusadora no processo criminal, sem qualquer tipo de controle judicial ou de participação da defesa. A corroborar este entendimento, o artigo 276 do Código de Processo Penal é claro ao assentar a impossibilidade de interferência das partes no que diz respeito à indicação do perito, verbis: “as partes não intervirão na nomeação do perito“. (…)

Dessa forma, e nos termos estritos do referido artigo da Lei Processual Penal, não poderia o Ministério Público, por iniciativa própria, dentro da sua estrutura, periciar de forma unilateral a agenda apreendida e, posteriormente, requerer a juntada do respectivo laudo aos autos, como se prova oficial fosse. (…)

Resta patente, então, a total inobservância aos postulados do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, já que a perícia foi realizada no âmbito do Ministério Público, sem autorização ou controle judicial, e sem possibilitar à defesa a oportunidade de ofertar quesitos, de nomear assistente técnico, ou mesmo de se manifestar sobre a eventual suspeição ou impedimento do perito, de acordo com o disposto no artigo 159, §§ 3º e 5º do Código de Processo Penal. (…)

Frise-se, outrossim, que o Estado do Rio de Janeiro conta, na estrutura de sua Polícia Civil, com um Departamento de Polícia Técnica e Científica, a quem competiria, no caso concreto, realizar quaisquer exames ou perícias oficiais no material arrecadado durante as buscas e apreensões. (…)

A atividade desenvolvida pelos peritos é eminentemente técnica, destinando-se à formação do convencimento do magistrado, o que revela a importância e a necessidade de o serviço prestado pelos técnicos ser idôneo e imparcial, o que não restou verificado no caso dos autos. (…)

Ante o exposto, concede-se a ordem para reconhecer a ilicitude do laudo pericial de criptoanálise realizado de forma unilateral pelo Ministério Público, determinando-se o seu desentranhamento dos autos.” (destacamos)

 

N o t a s

 

        A decisão acima foi tomada por maioria de votos, sendo que o principal argumento da divergência vencida foi o de que o Ministério Público, quando promove a juntada de um laudo, não estaria adstrito às regras do art. 159, CPP, as quais somente se referem à perícia oficial. Embora ponderável, a tese vencida é realmente improcedente.

            A questão de fundo, no julgamento acima, é da maior importância: qual é a real natureza do Ministério Público quando funciona como titular da ação penal – custos legis ou parte? Em qualquer caso, qual é o nível de sua equiparação, no processo, à defesa? Com relação à primeira dúvida, o Min. Relator responde: “a posição que mais se coaduna com a realidade do processo penal brasileiro é que defende que o citado órgão é parte parcial na ação penal“. Com relação à segunda dúvida, não consta, na íntegra do acórdão, discussão específica. Mas é esse o problema levantado pelos votos vencidos.

            Se vige, no processo penal, o princípio da igualdade das partes, ambas devem ter exatamente as mesmas possibilidades. Mas, será que elas as têm? Sabe-se que a acusação conta com os cofres públicos e com a força policial para produzir suas provas (cartas rogatórias, buscas e apreensões, investigações em sistemas de buscas sigilosos); ao passo que defesa somente poderá produzir o que ela puder custear. Além disso, a própria prova oficial é uma prerrogativa de que pode (ou melhor, deve) valer-se a acusação: é uma modalidade de prova legítima e, a princípio, inquestionável. Cumpre à acusação, e não à defesa, requer sua realização (a defesa tem apenas a faculdade de requerê-la).

            Da obrigatoriedade da prova oficial origina-se o dever do Ministério Público, quando pretende a condenação criminal de um cidadão, de requerê-la. Com relação a esse tipo de dado técnico de convicção, alexandre augusto costa (Considerações sobre a produção da prova pericial no processo penal e suas recentes modificações. Revista dos Tribunais, v. 888, p. 460, out. 2009. Versão eletrônica da RT-Online) explana:

“O Ministério Público, na condição de titular da ação penal pública (art. 129, I, da CF/1988) e art. 257, I, CPP, e, portanto, parte no processo, deve requerer à autoridade policial ou à autoridade judiciária que se realizem os exames periciais e, somente sendo necessários tais exames ao esclarecimento da verdade, a autoridade requisitará o órgão de perícia oficial para as devidas providências (art. 178 do CPP). (…) O art. 159, § 3.º, do CPP, nivela o Ministério Público à condição de parte no processo penal, evitando-se, para o benefício da imparcialidade das provas periciais, que a proximidade do Ministério Público em relação aos peritos oficiais seja privilegiada em detrimento da defesa do acusado.” (destacamos)

            A prova oficial é uma garantia pública de que o Judiciário, ao proferir suas convicções, estará pautado em elementos científicos de convicção minimamente seguros – isto é, imparciais. Isso porque “os peritos, oficiais ou não, estão sujeitos à disciplina judiciária e, portanto, submetendo-se, no que lhes for aplicável, às hipóteses de suspeição dos juízes (art. 280 do CPP), elencadas no art. 254 do CPP” (idem).

            Não haveria razão para o legislador criar a figura da perícia oficial e disciplinar o seu procedimento (CPP, art. 159 e seguintes) se o órgão público que propõe a ação penal pudesse simplesmente substituí-la por uma perícia “particular”. Aliás, se ele pudesse fazê-lo, seria necessária prévia licitação para a contratação do profissional, não? Não temos conhecimento de ação penal pública cujo titular tenha anexado aos autos um laudo técnico feito por particular contratado para tanto.

            E mais: se a lei não proíbe que o órgão da acusação faça juntar aos autos uma perícia não oficial, ela também não o permite. Se ao particular aplica-se o princípio da autonomia da vontade – segundo o qual lhe é permitido fazer o que a lei não proíbe – a “vontade” do Ministério Público decorre exclusivamente da lei: a ele somente cabe fazer somente o que a lei prevê, inclusive enquanto parte no processo.

            A rigor, e embora, teoricamente, exista, na dogmática do processo penal, a formulação do princípio da igualdade da partes, sabe-se que, na prática, ele não existe. Em que pese a Constituição estabeleça o corolário da ampla defesa, e não o da “ampla acusação” – o que indica que é a defesa, e não o Ministério Público, que deve contar com maiores possibilidades de atuação e de expressão em um litígio judicial – na prática, a acusação dispõe de mais meios de prova, tanto porque é subsidiada, material e moralmente, pelo próprio Estado, quanto porque a perícia cuja produção requerer será, sempre, oficial – e obedecerá, portanto, ao disposto no art. 159 e seguintes do Código de Processo Penal.

 

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