Falsa declaração de identidade e autodefesa: atipicidade

              A Reclamação pode se mostrar um instrumento bastante útil na resolução de divergência jurisprudencial entre Turmas Recursais e o STJ. Leia-se a ementa:

  

“RECLAMAÇÃO. DIVERGÊNCIA ENTRE ACÓRDÃO DA TURMA RECURSAL DO DISTRITO FEDERAL E A JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RESOLUÇÃO Nº 12⁄2009 STJ. FALSA DECLARAÇÃO DE IDENTIDADE PERANTE A AUTORIDADE POLICIAL. GARANTIA CONSTITUCIONAL DE AUTODEFESA E DE NÃO PRODUZIR PROVAS CONTRA SI MESMO. ATIPICIDADE DA CONDUTA.

I. Reclamação proposta nos moldes determinados na Resolução nº 12⁄2009 do STJ, através da qual o reclamante requer a cassação do acórdão reclamado, a fim de fazer prevalecer a jurisprudência pacificada no âmbito desta Corte no sentido da inexistência de crime na conduta de se atribuir falsa identidade perante a autoridade policial em face do princípio constitucional da autodefesa compreendido no de permanecer calado conforme disposto no art. 5º, LXIII da Constituição.

II. Ao declarar a falsa identidade, em hipótese em que não fica patente o propósito de obter vantagem, a conduta revela-se atípica em face do art. 307, CP.

III. Caso em que as instâncias ordinárias concluíram que o reclamante mentiu para defender-se.

IV. Exercício de direito constitucional de não produzir provas contra si mesmo devidamente reconhecido.

V. Atipicidade da conduta por ausência de demonstração do elemento subjetivo do tipo (‘para obter em proveito próprio‘) e do elemento normativo (‘vantagem‘).

VI. Decisão da 2ª Turma Recursal do Distrito Federal que, no caso concreto, aplicou o art. 307 CP à conduta atípica.

VI. Reclamação procedente porque, ante os fatos da causa, o acórdão da 2ª Turma Recursal contrariou a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Liminar mantida apenas em relação ao reclamante, revogada quanto ao mais.”

 (STJ – Rcl 4526/DF – 3ª S. – Rel. Min. Gilson Dipp – DJe de 30.8.11)

 

O voto do relator é elucidativo:

 

RELATÓRIO

 O EXMO. SR. MINISTRO GILSON DIPP (Relator):

Trata-se de reclamação proposta por HUGO BARBOSA DA SILVA FILHO, com fundamento no art. 105, I, ‘f’ da Constituição Federal, regulamentado pelo art. 187 e seguintes do Regimento Interno no STJ, bem como na Resolução n.º 12 do STJ, contra acórdão proferido pela Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Distrito Federal, assim ementado:

PENAL. CRIME DE FALSA IDENTIDADE. TESE RECURSAL: ATIPICIDADE EM FACE DO PRINCÍPIO DA AUTODEFESA. NÃO ACOLHIMENTO. I. COMETE O CRIME PREVISTO NO ART. 307, DO CÓDIGO PENAL, A PESSOA QUE, LEGITIMAMENTE DETIDA E CONDUZIDA À DELEGACIA, SE ATRIBUI FALSA IDENTIDADE, DECLINANDO NOME FALSO A FIM DE ESCONDER SUA VIDA PREGRESSA CRIMINAL. II. TAL CONDUTA, EMBORA PRATICADA COMO PRETENSO MEIO DE ‘AUTODEFESA’, NÃO PODE DESCARACTERIZAR O DELITO, SOBRETUDO SE TERCEIRO PODERIA SER INJUSTAMENTE ATINGIDO EM SUA ESFERA JURÍDICA EM DECORRÊNCIA DESSE  ILÍCITO AGIR, ULTERIORMENTE DESCOBERTO. III. O ACUSADO TEM O DIREITO CONSTITUCIONAL DE PERMANECER CALADO ACERCA DA IMPUTAÇÃO FÁTICO-JURÍDICA. O QUE NÃO SE MOSTRA RAZOÁVEL  ESTENDÊ-LO A PONTO DE MENTIR SOBRE SUA PRÓPRIA IDENTIDADE (NOME), ATRIBUTO DA PERSONALIDADE. IV. SENTENÇA CONDENATÓRIA MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. V. VENCIDO O RELATOR, QUE PROVIA O RECURSO. MAIORIA. DESIGNADO O 1º VOGAL COMO RELATOR, TUDO CONSOANTE AS NOTAS TAQUIGRÁFICAS.’ (fl. 63).

Consta dos autos que o reclamante foi denunciado pela suposta prática do delito descrito no art. 307 do Código Penal (falsa identidade) porque no dia 23 de agosto de 2007, nas dependências da 18ª Delegacia de Polícia de Brasília⁄DF, teria informado nome diverso do verdadeiro com o fim de ocultar a sua vida pregressa.

O reclamante restou condenado à pena de 6 (seis) meses de detenção, sentença que restou confirmada em sede de apelação criminal pela Turma Recursal.

Na presente reclamação, utilizada nos moldes determinados na Resolução n.º 12⁄STJ, pugna o reclamante pela cassação do acórdão reclamado, a fim de fazer prevalecer a jurisprudência pacificada no âmbito desta Corte no sentido de que inexiste crime na conduta de se atribuir falsa identidade perante a autoridade policial em face do Princípio Constitucional da autodefesa, ex vi do art. 5º, LXIII, da CF⁄88.

O Reclamante trouxe à colação julgados desta Corte acerca do tema, pacificada no entendimento de que é atípica a conduta daquele que se atribui falsa identidade perante a autoridade policial, por se tratar de atitude de autodefesa, garantida constitucionalmente.

Por meio da decisão de fls. 87⁄88, nos termos do art. 2º, I, da Resolução 12⁄STJ, foi deferida a liminar pleiteada, para determinar a suspensão de todos os processos em trâmite em Juizados Especiais Criminais, nos quais tenha sido estabelecida controvérsia semelhante à dos presentes autos, até o julgamento final desta reclamação. Informações prestadas às fls. 274⁄280, através das quais o Juiz de Direito da Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Distrito Federal juntou a cópia do acórdão reclamado, afirmando que a Turma Recursal ‘houve por bem apontar a tipicidade da conduta em face das peculiaridades do caso concreto’.

A Associação Nacional do Ministério Público Criminal – MPCrim – entidade representativa da classe de âmbito nacional que congrega os integrantes do Ministério Público, por meio de manifestação de fls. 301⁄455, requereu a sua habilitação nos autos como instituição interessada na controvérsia estabelecida, com fulcro no art. 543-C, § 4º, do CPC. A Subprocuradoria Geral da República opinou pela remessa dos autos à Corte Especial, órgão competente para dirimir questão constitucional de atipicidade da conduta, por contrariar direito ao silêncio e a não produção de provas contra si mesmo, e, no mérito, pelo indeferimento do pedido (fls. 458⁄460).

O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, na qualidade de interessado direto e litisconsorte passivo necessário, peticionou aos autos requerendo a revogação da medida liminar, ao menos em relação ao ato reclamado – acórdão proferido na APJ 2007021004646-7 – e aos demais feitos de igual natureza em tramitação ou que vierem a tramitar na Justiça do Distrito Federal.

Entende o Ministério Público que o tema discutido tem estrita motivação constitucional, não se enquadrando no art. 1º da Resolução 12⁄2009 do STJ, o qual concebeu a hipótese de Reclamação contra acórdãos de Turmas Recursais Estaduais e do Distrito Federal quando a jurisprudência do STJ pudesse ser desconsiderada por não caber recurso especial daqueles veredictos.

Argumenta que a disposição regimental terá aplicação apenas nas hipóteses em que o Superior Tribunal de Justiça tiver a última palavra sobre a questão jurídica, limitada à matéria infraconstitucional. Por esse motivo, analisa, é que os acórdãos da Justiça local que decretaram a atipicidade em casos análogos foram objeto de recurso extraordinários deduzidos pelo MPDFT. Alega que a motivação da presente postulação está no iminente risco de prescrição e requer se julgue extinta a Reclamação ou, ao menos, que suspenda a liminar concedida em relação aos processos atuais ou futuros versando sobre a atipicidade do art. 307 do Código Penal.

É o relatório.

  

VOTO

 

O EXMO. SR. MINISTRO GILSON DIPP (Relator):

Trata-se de reclamação proposta por HUGO BARBOSA DA SILVA FILHO, com fundamento no art. 105, I, ‘f’ da Constituição Federal, regulamentado pelo art. 187 e seguintes do Regimento Interno no STJ, bem como na Resolução n.º 12 do STJ, contra acórdão proferido pela Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Distrito Federal.

O Reclamante, condenado à pena de 6 (seis) meses de detenção pela prática do crime previsto no art. 307 do Código Penal, ajuizou a presente Reclamação, prevista na Resolução n.º 12, de 14 de dezembro de 2009, para dirimir divergência entre acórdão proferido pela Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal e precedentes da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, requerendo seja dada prevalência à jurisprudência firmada nesta Corte Superior no sentido da atipicidade da conduta do detido que se atribui falsa identidade para ocultação de antecedentes criminais.

A Resolução n.º 12⁄2009 foi editada por força da decisão do Egrégio Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos EDcl no RE nº 571.572-BA, relatado pela Ministra Ellen Gracie, que fixou orientação no sentido do cabimento, em caráter excepcional, da reclamação prevista no art. 105, I, f, da Constituição Federal, contra decisões das Turmas Recursais, para fazer prevalecer a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça na interpretação da legislação infraconstitucional, até a criação da turma de uniformização dos juizados especiais estaduais. A competência da Turma de Uniformização no âmbito da Justiça Federal estende-se genericamente aos casos de divergência entre decisões de turmas de diferentes regiões ou em contrariedade a súmula ou jurisprudência dominante do STJ (Lei 10.259, de 12.07.2001).

Paralelamente, na mesma linha, é cabível a reclamação prevista no art. 105, I, f, da Constituição, em caso de divergência entre acórdãos proferidos por turma recursal estadual e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, suas súmulas ou orientações decorrentes do julgamento de recursos especiais na interpretação da legislação infraconstitucional, até a criação da turma de uniformização dos juizados especiais estaduais (Resolução n.º 12⁄2009).

Conforme consta do relatório, o Reclamante, nas dependências da 18ª Delegacia de Policia de Brasília-DF, em 23 de agosto de 2007, quando da sua identificação informou nome diverso do verdadeiro com o fim de ocultar a sua vida pregressa, resultando, porém, condenado a 6 meses de detenção assim que desfeita a inverdade. Pretende o reclamante fazer prevalecer a jurisprudência do Tribunal no sentido de que inexiste crime na conduta referida face ao prevalecimento do princípio constitucional de que ninguém pode ser compelido a se autoinculpar.

A controvérsia, portanto, é saber se a conduta do reclamante de identificar-se falsamente perante a autoridade policial constitui ato ilícito previsto como crime no artigo 307 do Código Penal, ou, em vista da cláusula constitucional de que ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo, que exclui o elemento subjetivo do tipo, é ela atípica. A meu sentir, não há uma fórmula única para solucionar esse tipo de divergência, pois a 2ª Turma Recursal do DF, embora reconhecendo que o reclamante utilizou-se dessa inverdade para não ser identificado, entendeu como crime a conduta que o STJ tem entendido como exercício de autodefesa.

Ora, a figura típica se realiza quando o agente se atribui falsa identidade ‘para obter vantagem em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a outrem‘. Ou, em outros termos, haverá crime quando manifesta a finalidade de alcançar vantagem com a enunciação da falsa identidade e vantagem como elemento normativo do tipo tem o significado de proveito ou benefício contrário à ordem jurídica, o que inocorre nessa hipótese uma vez a rigor isso é meio inidôneo para esconder a identidade real. Sucede, assim, que, a prevalecer o entendimento de que se trata de autodefesa, o agente ao identificar-se falsamente para fugir a uma possível apuração que lhe revelasse vida pregressa com antecedentes, não está em busca de vantagem ilícita senão exercendo um possível direito constitucional como tem reconhecido a jurisprudência do STJ (v.g., entre vários, HC 171.389-ES, Laurita, 5T, Dje 17.052011; HC 99.179-SP, Arnaldo, 5T, DJe 13.12.2010; HC 151.479-SP, Og Fernandes, 6T, Dje 6.12.2010; HC 46.747-MS, Fischer, 5 T, DJe 20.02.2006; HC 21.202-SP, Carvalhido, 6 T, Dje 13.03.2006; HC 153.264-SP e HC 145.261-MG, Limongi, j. 08.02.2011; e o REsp 432.029-MG, Rel. Hélio Qualglia, DJ 27.10.2004).

Registro, porém, que a jurisprudência do STF é no mesmo sentido da decisão da 2ª Turma Recursal (HC 72.377-SP, Velloso, 2 T, 23.05.1995 e RE 470.944- DF, Eros Grau, decisão de 14.03.2006), pois ficou assentado que o direito de permanecer calado (art. 5º, LXIII CF⁄88) não compreende o de mentir sobre sua identidade à autoridade policial.

Nada obstante, prevalece no STJ a orientação de que a conduta do agente que perante a autoridade policial declara falsamente sua identidade não pratica o crime do art. 307 do CP pois a conduta é atípica. Como visto, cuida-se de questão a ser enfrentada e solvida caso a caso, pois sempre será preciso verificar se o agente efetivamente se comportou em autodefesa ou se, ao contrário, buscou encobrir uma vantagem indevida, hipótese essa em que, sim, ficará realizada a figura típica do art. 307 CP.

Colocadas essas premissas, parece indiscutível que a matéria de natureza estritamente constitucional, como arguida pelo MPF, está logicamente na dependência de apreciação do caso concreto.

Ou seja, a questão constitucional é indireta pois é preciso antes de identificá-la apurar se os fatos revelados indicam que o agente utilizou-se da cláusula constitucional para abrigar seu interesse ou não, o que significa dizer que nem toda a declaração de falsa identidade perante a autoridade policial é conduta atípica.

Por isso, a eventual derivação do direito à autodefesa implicará na atipicidade da conduta, e não, na discussão do direito constitucional de não produzir prova contra si mesmo. A discussão constitucional somente ficaria evidenciada se o Tribunal local tivesse assentado que o reclamante não tem direito à autodefesa. Portanto, se o Tribunal local admitiu que o agente comportou-se de modo a esconder sua identidade para fugir da possível identificação dos seus antecedentes, essa conclusão afina com o pressuposto de fato da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual em princípio isso constitui exercício de direito constitucional de autodefesa. Em resumo, a reclamação em exame se justifica porque a 2ª Turma Recursal do DF, ao adotar orientação diversa, afrontou a tese do STJ de que a autodefesa exclui o crime de falsa identidade. Por fim, como pareceu já ao primeiro exame, a medida liminar deferida estava devidamente fundamentada.

Ante o exposto, julgo procedente a reclamação para reformar a decisão da 2ª Turma Recursal e absolver o reclamante por atipicidade, ratificando-se a liminar anteriormente deferida apenas em relação ao reclamante, revogada quanto aos demais casos a serem apreciados individualmente pelos respectivos órgãos julgadores, observados os fundamentos acima. Certifiquem-se os Tribunais, conforme o disposto no artigo 2º, inciso I, da Resolução nº 12⁄2009.

É o voto.” (destacamos)

 

N o t a s

 

            Inicialmente, o julgamento ressalta a imprevisibilidade natural ao destino das demandas judiciais, mesmo que haja jurisprudência predominante em determinada direção. Trata-se de uma característica própria da atividade de interpretar a lei, que bem define (ainda que de modo simplista) o ato de julgar. O ponto que ganha destaque, aqui, é preocupação com a solução caso a caso.

            Embora possa parecer óbvia, a cautela de que cada caso seja analisado nos limites de suas peculiaridades é cada vez mais importante, pois chegaram os tempos em que o problema da morosidade do Judiciário deixou de ser algo estrutural, político, social, administrativo e cultural e passou a ser, quase sempre, somente problema do “excesso de demandas” ou de “recursos protelatórios“.

Essa conclusão difunde a noção equivocada de que se deve reduzir, o mais possível, as possibilidades do cidadão de acesso ao Judiciário. Daí, então, a importância de que se repita o que todos sabem: os casos são todos diferentes uns dos outros e merecem a devida atenção das autoridades públicas, ainda que pareçam iguais a outro caso. Somente uma análise profunda permitirá conhecer os detalhes individualizadores de cada controvérsia. Esse tipo de exame poderá ser feito, adequadamente, em autos de uma Reclamação, p.ex.

Afora essa questão, remanesce a discussão sobre a atipicidade da conduta tipificada no art. 307, CP, quando se trata de investigado/acusado que, objetivando sonegar do poder público seus antecedentes criminais, informa-lhe falsa identificação civil. Para o STJ, todos têm direito à autodefesa, o que significa que ninguém é obrigado a produzir prova contra si. Seria contrária a essa cláusula a lei que obrigasse o sujeito a revelar, em uma investigação criminal, a existência de indícios ou provas contra ele próprio. Enquadram-se nessa classificação seus antecedentes criminais, na medida em que podem contribuir para um juízo negativo a seu respeito e/ou para lhe reduzir direitos e agravar a sua (eventual) pena.

 

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