Denúncia anônima

 

            A aceitabilidade jurídica de uma denúncia anônima como prova em processos administrativos ou judiciais já suscitou muita discussão nos tribunais. Recente decisão do Superior Tribunal de Justiça em caso de repercussão trouxe, novamente, esse assunto a público. Veja-se a ementa:

 

HABEAS CORPUS. ‘OPERAÇÃO CASTELO DE AREIA’. DENÚNCIA ANÔNIMA NÃO SUBMETIDA À INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR. DESCONEXÃO DOS MOTIVOS DETERMINANTES DA MEDIDA CAUTELAR. QUEBRA DE SIGILO DE DADOS. OFENSA ÀS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS. PROCEDIMENTO DE INVESTIGAÇÃO FORMAL. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DE MOTIVOS IDÔNEOS. BUSCA GENÉRICA DE DADOS.

As garantias do processo penal albergadas na Constituição Federal não toleram o vício da ilegalidade mesmo que produzido em fase embrionária da persecução penal.

A denúncia anônima, como bem definida pelo pensamento desta Corte, pode originar procedimentos de apuração de crime, desde que empreendida investigações preliminares e respeitados os limites impostos pelos direitos fundamentais do cidadão, o que leva a considerar imprópria a realização de medidas coercitivas absolutamente genéricas e invasivas à intimidade tendo por fundamento somente este elemento de indicação da prática delituosa.

A exigência de fundamentação das decisões judiciais, contida no art. 93, IX, da CR, não se compadece com justificação transversa, utilizada apenas como forma de tangenciar a verdade real e confundir a defesa dos investigados, mesmo que, ao depois, supunha-se estar imbuída dos melhores sentimentos de proteção social.

Verificada a incongruência de motivação do ato judicial de deferimento de medida cautelar, in casu, de quebra de sigilo de dados, afigura-se inoportuno o juízo de proporcionalidade nele previsto como garantia de prevalência da segurança social frente ao primado da proteção do direito individual.

Ordem concedida em parte, para anular o recebimento da denúncia da Ação Penal n.º 2009.61.81.006881-7.”

(STJ – HC 137349/SP – 6ª T. – Rel. Min. Maria Thereza Rocha de Assis Moura – DJe de 30.5.11)

 

            Do longo e bem fundamentado voto da Ministra relatora, extraem-se algumas passagens indispensáveis à adequada compreensão da questão:

“(…)

O que se está a debater praticamente esgota e desvenda o âmbito de atuação das autoridades públicas, com vistas à proteção da segurança social, em comparação com o leque de normas de proteção da liberdade individual, no qual se encontra, também, o direito à intimidade.

Qual o limite, no caso concreto, do direito da coletividade à persecução penal?

Esse parece ser o ponto candente da discussão heroica.

Sem dúvida, controvérsias como as que tais serão sempre ditadas pelo conflito de princípios fundamentais onde a solução tende a alicerçar-se no equilíbrio entre a liberdade do cidadão, de grande valia para a preservação do Estado Democrático de Direito, nos fundamentos da cidadania e da dignidade da pessoa humana (art. 1º, incisos II e III, da CR), e o sentido da segurança social, sem a qual o próprio Estado deixaria de existir.

Se de um lado a pessoa deve ter preservada a sua individualidade, de outro, o Poder Público tem a prerrogativa de fazer prevalecer a ordem, afastando e coibindo, dentro do plano da legalidade, eventuais desestímulos à paz social. E tudo se interpondo no curso da previsão constitucional do devido processo legal.

A título de menção, esclareça-se que a doutrina, de modo geral, tem dado ênfase à necessidade de se buscar um ponto médio entre o direito libertário e a salvaguarda da sociedade.

(…)

Reafirme-se: a perquirição dos pontos de estrangulamento entre o que se deve ter como liberdade individual e o que deve ser entendido como prerrogativa de persecução criminal, há de merecer o cuidado absoluto do julgador, inclusive no tocante a reconhecer as limitações do procedimento escolhido para análise do caso concreto.

É momento de averiguar os parâmetros da causa penal.

(…)

Consta dos autos, a partir das fls. 241 do primeiro h.c., que a Polícia Federal, após receber denúncia anônima de que o suíço, naturalizado brasileiro, KURT PAUL PICKEL estaria se dedicando à atividade ilegal de compra e venda de dólares, representou ao Juízo da Vara Especializada em Crimes Financeiros da Seção Judiciária de São Paulo, em 10⁄1⁄2008, pela quebra do sigilo telefônico dos usuários de telefonia, para que se pudesse dar início às investigações formais, já que ‘…nestes tipos de delitos, há enorme dificuldade na obtenção de provas’ (Ofício n.º 2504⁄2008). 

(…)

A questão é por demais tormentosa no âmbito desta Corte, para não dizer, no âmbito da própria jurisprudência.

Penso que os demais componentes da Turma conhecem o meu firme posicionamento acerca do procedimento da denúncia anônima.

Devo lembrar aos eminentes pares o que externei no voto-vencido em julgamento ocorrido no final do primeiro semestre de 2010, do HC 128776⁄SP (Acórdão publicado em 12⁄11⁄2010), de que relator o Ilustre Desembargador convocado Celso Limongi e originário do mesmo TRF da 3ª Região, sobre a ilicitude de procedimentos como os que tais, em que há pedido genérico de quebra de dados telefônicos, sem a indicação de terminais e abrangendo todos os usuários do sistema, tudo por decorrência do anonimato.

Volto ao norte inicialmente posto acerca do binômio proteção do interesse social versus garantia do interesse individual.

O tema é, por essência, árido, máxime pelo fato de envolver certas posições ideológicas, supostamente encampadas pela opinião pública, como a que projeta o comprometimento das autoridades públicas com planos de segurança absolutamente invasivos, alicerçados no manto da proporcionalidade e da razoabilidade.

Com essa idealização, é preciso verificar as bases da atuação proporcional, sob pena de se banalizar muitas garantias constitucionais, como a que está assentada no art. 5º, IV, da CR: vedação do anonimato.

(…)

De início, diante das particularidades do caso concreto, tenho que o ferimento da garantia fundamental engloba não só o aspecto da vedação do anonimato, mas, sobretudo, a escolha de medida incisiva, típica da investigação formal, que não poderia ser deferida com base tão-só em denúncia anônima.

Não se está, com isso, a negar, por si só, a formulação da denúncia anônima, mas, no caso presente, a fulminar os seus contornos de averiguação porquanto despropositada ao objetivo de vasculhar a intimidade da pessoa.

(…)

Novamente insisto no ponto de que a denúncia anônima, em grau de proporção, não pode alicerçar medidas coercitivas sem haver um mínimo de outros elementos indiciários, porque a recomendação majoritariamente aceita dá conta de que, primeiro, deve-se colher elementos de confirmação da notícia anônima, para, a partir daí, se embrenhar nos meandros de comprovação do fato alegado.

Uma coisa é dar-se início à investigação preliminar para se comprovar a lisura da denúncia anônima, outra, totalmente diversa, é cercar-se desta para arregimentar mecanismos cautelares excepcionais de colheita de provas e de comprovação de fatos supostamente delituosos, que somente seriam possíveis diante da abertura do inquérito policial.

É por essa vertente que verifico, na espécie, a desconexão entre a medida cautelar de quebra do sigilo de dados de um sem-número de usuários do sistema de telefonia e a necessidade de comprovação inicial do teor da denúncia anônima.

Como visto, a Polícia Federal tinha acesso aos dados da pessoa investigada, sabendo a sua identidade e, certamente, podia averiguar a sua movimentação diária, já que era acompanhada pelos procedimentos da ‘inteligência’ policial, conforme afirmado nos expedientes endereçados ao Juiz do caso.

Portanto, cabia-lhe desvendar a situação do investigado, o que fazia, de que forma procedia, etc., e não, a partir do fundamento da denúncia anônima, desde logo invadir a intimidade de número indeterminado de pessoas, num procedimento de prospecção e de busca aleatória.

Neste passo, verifique-se que o Ministério Público Federal, no primeiro momento, compreendeu ser genérica a medida postulada; porém, não obstante inexistir justificativa hábil, assentiu, ao depois, ao seu deferimento.

(…)

A tomar pelo noticiado nas informações do Ilustre magistrado, de que havia procedimento de delação premiada, ou mesmo investigações preliminares, como defendido no acórdão ora atacado, os quais teriam embasado também a investigação inicial no caso da ‘Operação Castelo de Areia’, resta igualmente duvidosa a legalidade dos fundamentos da medida excepcional deferida, tendo em vista a previsão do art. 93, IX, da CR.

Com efeito, a exigência de motivação das decisões judiciais traz em si a obrigatoriedade ética da comprovação dos dados que eventualmente sustentam determinado provimento, porquanto, no processo dialético-democrático não é crível imaginar que ao juiz seja conferido o poder de decidir por meio de situações ocultas, não verificadas nos autos ou somente apuráveis nas entrelinhas da investigação.

Ao que tudo indica, há um desacerto entre os motivos inicialmente postos e a verdade da persecução, trazendo, como consequência, infeliz confusão de institutos.

De fato, as contradições do caso mostram que, primeiro, houve a indicação de denúncia anônima. Depois, houve a indicação de autos de delação premiada advinda de outra situação persecutória. E, por fim, que os indícios preliminares decorriam de testemunho protegido, portanto, oculto, ou mesmo de informante em outra operação policial.

No meu entender, com a devida vênia, tal situação soa absolutamente nova ao ordenamento jurídico, máxime porque, a despeito de se cogitar da proteção do agente delator, não se pode aceitar a proteção da verdade por meio de sua ocultação. Dizer que existe delator ou testemunha protegida, ou informante que seja (figura, a meu ver, ainda desconhecida do nosso sistema), não tem o mesmo sentido do que dizer que os indícios e provas tenham de ser sub-reptícios em razão da necessidade de ocultar a verdade até quando necessária aos órgãos de persecução.

Parece que não é isso que consta da previsão legal e não pode ser isso sugerido pela ponderação de princípios albergada no manto da proporcionalidade.

(…)”

 

N o t a s

 

            Pelo que consta da decisão, percebe-se que, dentre outros detalhes, recebeu-se uma denúncia anônima e, imediatamente após – antes de qualquer outro procedimento de verificação mínima sobre a veracidade ou a falsidade do conteúdo da denúncia – deflagraram-se medidas cautelares de invasão da esfera do particular. O Estado-Polícia, nesse caso concreto, afastou o basilar direito à intimidade e à privacidade, bem como diversos tipos de sigilos, todos constitucionalmente protegidos, de várias pessoas, com base, única e exclusivamente, em uma acusação sem autor e sem lastro.

O STJ, então, tratou de avaliar: “qual o limite, no caso concreto, do direito da coletividade à persecução penal?” É certo que há limite. A preservação do anonimato de uma denúncia em detrimento da dignidade da pessoa humana do investigado/acusado foi corretamente repreendida pelo STJ, já que a “ocultação da verdade”, inacessível pelo próprio aparato investigativo, acaba por macular todo o sentido da apuração, tornando questionável a própria legitimidade de agir dos órgãos de persecução. E se o autor da denúncia for o verdadeiro criminoso? E se o conteúdo dela for falso? Quem responderá pela denunciação caluniosa? Quem reparará os danos pessoais causados aos suspeitos pela investigação que é motivada em uma acusação sem dono ou origem e possivelmente ilegal? A solução dada pelo STJ está em justa consonância com o entendimento do STF.

O Ministro do STF, Celso de Mello, em decisão monocrática proferida nos autos do Habeas Corpus nº 100042/RO, publicada em 8.10.09, considerou a vedação ao anonimato aplicável a todo e qualquer “procedimento estatal“. Veja-se:

“Não se desconhece que a delação anônima, enquanto fonte única de informação, não constitui fator que se mostre suficiente para legitimar, de modo autônomo, sem o concurso de outros meios de revelação dos fatos, a instauração de procedimentos estatais.

É por essa razão que o Supremo Tribunal Federal, ao aprovar a Resolução STF nº 290/2004 – que instituiu, nesta Corte, o serviço de Ouvidoria – expressamente vedou a possibilidade de formulação de reclamação, críticas ou denúncias de caráter anônimo (art. 4º, II), determinando a sua liminar rejeição.” (STF – HC 100042/RO – Decisão liminar – Min. Celso de Mello – DJ de 8.10.09)

Vê-se que, para o STF, a instauração formal de investigação não pode ter a delação anônima como origem exclusiva. Não se admite, ainda, a incorporação do documento apócrifo aos autos da investigação – a denúncia não pode ser acostada ao processo, ainda que acompanhada de outros elementos de prova independentes:

“(a) o escrito anônimo não justifica, por si só, desde que isoladamente considerado, a imediata instauração da ‘persecutio criminis’, eis que peças apócrifas não podem ser incorporadas, formalmente, ao processo, salvo quando tais documentos forem produzidos pelo acusado, ou, ainda, quando constituírem, eles próprios, o corpo de delito (como sucede com bilhetes de resgate no delito de extorsão mediante seqüestro, ou como ocorre com cartas que evidenciem a prática de crimes contra a honra, ou que corporifiquem o delito de ameaça ou que materializem o ‘crimen falsi’, p. ex.);'” (idem)

O STF foi mais longe e estabeleceu os critérios para a sobrevivência da denúncia anônima como instrumento de exercício da cidadania – já que, muitas vezes, é o único meio apropriado para o combate à criminalidade. Segundo a decisão, a denúncia anônima pode vir a fundamentar uma investigação informal que seja apta a colher novos indícios, absolutamente independentes:

“(b) nada impede, contudo, que o Poder Público, provocado por delação anônima (‘disque-denúncia’, p. ex.), adote medidas informais destinadas a apurar, previamente, em averiguação sumária, ‘com prudência e discrição’, a possível ocorrência de eventual situação de ilicitude penal, desde que o faça com o objetivo de conferir a verossimilhança dos fatos nela denunciados, em ordem a promover, então, em caso positivo, a formal instauração da ‘persecutio criminis’, mantendo-se, assim, completa desvinculação desse procedimento estatal em relação às peças apócrifas; e (c) o Ministério Público, de outro lado, independentemente da prévia instauração de inquérito policial, também pode formar a sua ‘opinio delicti’ com apoio em outros elementos de convicção que evidenciem a materialidade do fato delituoso e a existência de indícios suficientes de autoria, desde que os dados informativos que dão suporte à acusação penal não derivem de documentos ou escritos anônimos nem os tenham como único fundamento causal.” (idem)

Tais critérios implicam a necessidade de investigação informal pela Promotoria de Justiça na busca de elementos independentes aos citados na acusação apócrifa. Se, e somente se, após a busca informal, novos e autônomos indícios forem encontrados, é que se poderá cogitar da instauração formal da investigação: ela deve se desligar da denúncia anônima e pautar-se exclusivamente nos novos indícios.

            A título ilustrativo, citam-se, a seguir, outros precedentes que vedam a denúncia anônima como elemento que dê ensejo à instauração formal de investigação criminal:

“ANONIMATO – NOTÍCIA DE PRÁTICA CRIMINOSA – PERSECUÇÃO CRIMINAL – IMPROPRIEDADE. Não serve à persecução criminal notícia de prática criminosa sem identificação da autoria, consideradas a vedação constitucional do anonimato e a necessidade de haver parâmetros próprios à responsabilidade, nos campos cível e penal, de quem a implemente.” (STF – 1ª T. – HC 84827 – Rel.  Min. Marco Aurélio – DJe de 23.11.07.)

 

“A delação anônima não constitui elemento de prova sobre a autoria delitiva, ainda que indiciária, mas mera notícia dirigida por pessoa sem nenhum compromisso com a veracidade do conteúdo de suas informações, haja vista que a falta de identificação inviabiliza, inclusive, a sua responsabilização pela prática de denunciação caluniosa (art. 339 do Código Penal). (…) Aplicação da ‘teoria dos frutos da árvore envenenada’.” (STJ – HC 64096 – Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima – 5ª T. – DJe de 04.08.08. No mesmo sentido: STJ – HC 95838 – Rel. Min. Nilson Naves – 6ª T. – DJe de 17.03.08)

Como, no caso tratado pela decisão em destaque, a investigação e a colheita de provas foram iniciadas formalmente já com o recebimento da peça anônima e imediata decretação de medidas cautelares, é certo que todo o procedimento é nulo, eis que derivado de prova inequivocamente ilícita e autorizado em decisões judiciais com fundamentação inidônea. Nessas hipóteses, todo o procedimento ser anulado, desde sua origem, pela mácula à cláusula constitucional da vedação ao anonimato e a outras garantias processuais e materiais igualmente indispensáveis.

 

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