Vida de repórter

O jornalista Fritz Utzeri levantou mais que uma polêmica, uma inconveniente saia-justa na edição do Jornal do Brasil da semana passada, três dias depois que a notícia do desaparecimento do jornalista Tim Lopes virou notícia.

Como se falasse de corda em velório de enforcado, com todo o respeito, o colunista do JB levantou uma delicada questão: pode o jornalista ultrapassar os limites do jornalismo?

Na edição de ontem Fritz Utzeri volta ao assunto ao assunto, também colhendo depoimento de outros colegas. conhecidos do público, mas foi a repórter que mais fundo mergulhou nos bastidores e porões.

– Nesta semana, marcada pela angústia e talvez pela tragédia, dou a palavra a dois coleguinhas que correram muito perigo em suas vidas profissionais e que responderam à coluna de quarta, Os limites do jornalismo. O primeiro, Mário Chimanovitch, dispensa apresentações. Ana Lagoa talvez seja menos do regime militar.

Diz Mário Chimanovitch: ”Era algo que vinha me incomodando há muito tempo, essa história de repórter travestir-se em agente secreto e enganar fontes. Lamento profundamente o destino do Tim Lopes, mas acho que ele foi além dos limites, se expondo da maneira como o fez. Estou completando 34 anos de profissão e lembro até hoje dos morros que subi e das guerras que cobri. Estive em Beirute, de 74 a 76, cobrindo para o Estadão uma das mais cruentas guerras civis que o ser humano foi capaz de deflagrar. Perdemos muitos colegas naquele conflito insano, mas te garanto que ninguém morreu por porra-louquice”.

Acrescenta Ana Lagoa: ”Eu falava entre não jornalistas de como era absurdamente antiético da parte das empresas obrigarem seus repórteres a se travestirem-ocultarem-disfarçarem, em situações de alto risco e sem cobertura adequada, quando abri o jornal e vi seu artigo. A tecnologia deveria servir para nos dar mais tempo e segurança e não o contrário. Mas o show atingiu graus absurdos e aí temos esse quadro assustador, aviltante, indigesto. Eu cobria área militar, vivia metida em investigações de mortes e desaparecimentos, bombas e similares. Mas tínhamos esquema, dossiês de respaldo, telefones de emergência no âmago do poder, advogados de plantão, senhas e horários a cumprir antes de acionar os mecanismos da retaguarda. E nunca fui a qualquer lugar sem que soubessem que eu era jornalista, meu nome e o que estava fazendo. A profissão era a garantia. Os tempos são outros, concordo. Mas será que isso justifica a perda do nosso colega? Por que a empresa para a qual ele trabalha não colocou um esquema de segurança com ele? Por que foi ao baile sem cobertura? Por que não obedeceu ao esquema do horário da volta? Será que nossas vidas valem tão pouco?

Jornalismo investigativo não é a divulgação de fitas obtidas de modo obscuro, geralmente gravadas por bandidos para detonar outros bandidos. A imprensa acaba sendo mero instrumento dessa prática. Tim Lopes, por exemplo, gravava e corria riscos enormes porque o seu rosto não aparecia nas telas. A televisão transformou um repórter de indiscutível talento e rara sensibilidade humana num mero portador de câmera oculta.

Tim Lopes foi vítima da imprudência quase criminosa das chefias de jornalismo da TV. Por que se arriscou? Para mostrar imagens de algo sabido, em nome do voyeurismo. Cenas de sexo de adolescentes e consumo de drogas em bailes funk. Isso vale a vida de um repórter?

Até sexta-feira. E se você atentou, o editorial de O Estado do Paraná abordou esse assunto poucos dias antes do desaparecimento de Tim Lopes