A pílula anticonsumo

A empresária Débora Mattos, de 31 anos, vai aos shoppings todos os dias. E não resiste ao impulso de comprar tudo que tem vontade. Em uma semana, levou para casa 40 calças iguais, do mesmo modelo. Débora é de classe média, mora num bairro elegante da Zona Sul carioca, mas, mesmo tendo um bom rendimento mensal, estourou a conta bancária e o cartão de crédito com tamanho furor consumista. Os gastos fugiram ao controle e Débora se viu endividada até o último fio de cabelo. Depois de muitas brigas com o marido, ela procurou um psiquiatra e descobriu que sofria de uma doença: a compulsão do consumo, transtorno que prejudica a vida social e afetiva e pode levar à ruína. A surpresa foi maior quando, além de psicoterapia, o médico receitou um remédio: o antidepressivo citalopram (nome genérico), uma droga que está sendo receitada por médicos americanos e brasileiros para reduzir a compulsão das compras e já se tornou conhecida como “a pílula anticonsumo”.

O drama de Débora atinge cerca de 8% da população mundial; 90% mulheres entre 25 a 60 anos. Muitas delas compram modelos repetidos e dão presentes caros para aliviar a culpa. Nos Estados Unidos, o médico Robert Lefever acompanha 21 mulheres que sofrem de consumo compulsivo e estão usando citalopram. Uma de suas pacientes, Anne, comprou mais de mil blusas em dois meses e já não tinha mais espaço no armário. Casos como os de Anne e Débora são exemplos de como a química do cérebro mudou o tratamento da compulsão. Esta semana, os cientistas britânicos Steven Rose e Stephen Swithenby, usaram um scanner para mostrar que parte do cérebro entra em ação quando fazemos escolhas: são essas estruturas que “selecionam” o que compramos. O “shopping center” do cérebro – as áreas ativas quando selecionamos marcas de produtos – foi revelado na revista científica “Neural Plasticity”. Os cientistas suspeitam que estas áreas do cérebro são maiores nas mulheres e que as compradoras compulsivas sofrem de um distúrbio: a queda na produção de uma substância chamada serotonina.

– A droga age no centro das emoções do cérebro, estimulando a produção de serotonina e de outros mensageiros químicos dos neurônios. Isto reduz a depressão ou a ansiedade, comum nos consumidores compulsivos – diz o psiquiatra Marcelo Allevato.

Há, porém, quem seja contra a pílula, como a terapeuta Stella Rebecchi, da Oficina do Corpo e da Alma, no Rio.

– A pílula pode se tornar uma muleta.

Para o advogado Paulo Lins e Silva, o comprador compulsivo pode até se livrar da dívida.

– Se o laudo médico recomendar a interdição do paciente, as dívidas desaparecem porque as compras podem ser anuladas.

Furor de compras não tem limites de gastos

A administradora Lúcia Campos, de 27 anos, procurou um psicólogo para tratar bulimia (a compulsão por comida) e descobriu que também sofria de compulsão por compras. Ela costumava comprar várias peças de roupas, quase iguais, além de outros artigos sem necessidade. Tinha consciência de que agia compulsivamente, mas não conseguia se controlar.

Para tentar disfarçar seu comportamento, Lúcia logo que chegava em casa retirava as etiquetas das peças novas para ninguém desconfiar.

– Fiquei tão endividada que o meu pai teve que assumir parte das minhas dívidas. Agora estou em tratamento com psicoterapia e antidepressivo – conta Lúcia.

Consumidor também compra para presentear

O Celso Sustovich, diretor médico do laboratório Schering-Plough, que distribui o citalopram no Brasil, diz que vários estudos comprovaram em 76% dos casos a eficácia da droga antidepressiva para transtornos compulsivos.

– A compulsão por compras faz parte desse quadro. Por isto, o citalopram pode ajudar a tratar – afirma.

O comportamento compulsivo começa a se manifestar no final da adolescência, segundo o psiquiatra Marcelo Allevato, chefe da Unidade Integrada de Saúde Mental da Marinha e professor da Santa Casa da Misericórdia. Ele diz que o comprador compulsivo compra também para presentear. Isto funciona como álibi, aliviando a culpa da compra. E tende a negar o problema.

– Com o tempo, a pessoa percebe que está gastando muito, mas não se controla. As dívidas se acumulam – diz.

A psiquiatra Vera Lemgruber acrescenta que a compulsão por compra é grave.

– Alguns indivíduos recorrem a agiotas e até vendem os bens da família – conta Vera.

O médico Robert Lefever, que está usando o citalopram em mulheres americanas, diz que a compulsão por compras está freqüentemente associada a outros transtornos, como bulimia e compulsão por exercícios. O psiquiatra Marcelo Allevato diz que muitas vezes o problema é percebido por parentes e amigos.

– Quem sofre do problema não percebe claramente. O ato de comprar alivia a ansiedade – diz o médico.

Ele explica ainda que o consumidor compulsivo não compra para satisfazer as suas necessidades.

– A pessoa compra por comprar, sem levar em conta a utilidade das aquisições ou adequação destas ao seu orçamento. Como todo comportamento compulsivo, pode ter períodos de calma e piora, independentemente do tratamento. No entanto, sem tratamento, o problema complica muito. Ainda não se sabe porque o problema é mais comum nas mulheres – diz Allevato.

Sentimento de culpa não impede as compras

Vera Lemgruber afirma que o consumo compulsivo é mais comum do que se imagina (algumas pesquisas dizem que pode chegar a 15% da população). As pessoas são compelidas a comprar e sacrificam necessidades básicas como a educação dos filhos e o pagamento do aluguel.

– Esses indivíduos nem sempre se sentem culpados ao comprar em excesso e estourar o orçamento. O sentimento de culpa não impede que ela continue agindo da mesma forma. Algumas até se arrependem, ficam chateadas com a situação, mas não conseguem se controlar – diz Vera, presidente da Associação Psiquiátrica do Estado do Rio.

Os sinais de alerta da doença são: comprar sem necessidade artigos iguais ou em duplicata, esconder as etiquetas de compra, não se preocupar com o limite de gastos. Mas estourar o cartão de crédito costuma ser um alerta para a família. Ela diferencia o consumo compulsivo da compra para satisfazer uma necessidade emocional.

– Há pessoas que compram como forma de autogratificação para suprir a carência emocional. E isto não caracteriza o hábito de comprar compulsivamente – explica.

Ela diz que transtornos como o consumo compulsivo respondem bem ao tratamento com antidepressivos, associados à psicoterapia.

– Estes transtornos costumam diminuir com a idade e não sabemos porque isto ocorre. No tratamento, às vezes é necessário retirar cartões de crédito e talões de cheques do paciente – diz.

Allevato recomenda a psicoterapia no tratamento. E diz que não há cura definitiva para o problema. Mas a pessoa aprende a se controlar.

– O objetivo do tratamento é fazer o paciente levar uma vida normal. Isso pode levar mais de um ano – afirma.

A terapeuta Stella Rebecchi recomenda o processo Quíron, que consiste num trabalho corporal, mental e espiritual de autoconhecimento, baseado no programa de 12 passos, no qual o primeiro é admitir o problema.

– A melhor maneira de controlar o problema é buscar o autoconhecimento. Um dos passos é evitar a primeira compra inútil – afirma.

O professor Dilson Gabriel, que dá aulas de comportamento do consumidor na faculdade de economia e administração da USP, diz que o comprador compulsivo tem uma doença. E afirma que os hábitos de consumo são mais emocionais que racionais.

– A compra compulsiva é diferente da compra por impulso, por sentir uma atração instantânea pelo produto. Por exemplo, nos supermercados boa parte das compras é por impulso. Algumas pessoas são mais racionais e avaliam antes de comprar – diz.

Controle da compulsão

TRATAMENTO: A pílula anticonsumo usada isoladamente não resolve o problema. Segundo médicos, é preciso associar à psicoterapia. O tratamento é longo e pode durar mais de um ano. A doença não tem cura, mas o paciente pode levar uma vida normal, controlando sua compulsão por compras sem necessidade.

NEGAÇÃO: O psiquiatra Marcelo Allevato diz que o paciente tende a negar a doença e a menosprezar os sintomas. E não avalia os custos benefícios das compras. Drogas como a pílula anticonsumo atuam reduzindo a ansiedade e controlando o impulso de comprar.

DOSAGEM: A pílula anticonsumo era usada para tratar transtornos obsessivos-compulsivos, como a mania de limpeza ou verificação. Estudos mostraram que a dosagem de 20mg a 60mg, por seis meses, proporcionou melhora em 76% dos casos. Os especialistas afirmam que também é eficaz contra o hábito de comprar compulsivamente, sem controle.

TOLERÂNCIA: Segundo Allevato, um dos motivos para a indicação do citalopram contra o consumo compulsivo é o menor risco de efeitos colaterais, como dor de cabeça, náusea e insônia.

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