Ilha Navarino no sul do Chile: surpreenda-se no fim do mundo

Um par de décadas atrás, a Ilha Navarino, no extremo sul do Chile, era um lugar praticamente desconhecido como lugar turístico até para os próprios chilenos. Sua capital, Puerto Williams, era reduto da Marinha e quem ousasse aparecer por lá com máquina fotográfica na mão podia ser até preso.

Tempos turbulentos viveu a cidadezinha nos anos 80s, quando quase houve guerra entre Chile e Argentina, pelas ilhas Picton, Nueva e Lenox, no Canal de Beagle, que molha o litoral de Puerto Williams.

Mas hoje tudo isso é passado e a Ilha Navarino começa a despontar como mais um destino turístico que surpreende quem a visita. Para se chegar lá, deve-se tomar um Twin Otter, em Punta Arenas, para cruzar o histórico Estreito de Magalhães e sobrevoar a Terra do Fogo.

Mas as surpresas começam antes mesmo de aterrissar em Puerto Williams, já que o avião continua vôo até chegar ao verdadeiro fim do mundo, o Cabo Horn, onde faz dois vôos rasantes, sobrevoa o início do mítico e temido Mar de Drake, para depois voltar rumo a Puerto Williams. Um começo emocionante, para uma viagem surpreendente.

Há alguns anos, empresários de Punta Arenas com visão afiada e certeira, tomaram as antigas instalações da hosteria Wala, fizeram uma reforma arquitetônica e abriram o primeiro hotel-boutique de Puerto Wlliams, o Lakutaia, que significa baía de cormorões, em língua yagán, a falada pelos nativos que moraram na região.

Muitos acharam uma loucura. Turismo em Ilha Navarino? Impossível. Mas está aí. Hoje podem ser realizadas na ilha expedições de barco, caminhadas, cavalgadas, pesca esportiva, inclusive de helicóptero a lagos raramente visitados, assim como uma série de outras atividades, tendo como “acampamento base” o aconchego do Lakutaia.

Uma lareira sempre acesa, sutil decoração com elementos nativos da cultura yagán, palestras diárias sobre aspectos culturais, biológicos e arqueológicos da região e uma culinária muito bem cuidada, que fica a cargo de Márcia Villarroel.

Esta simpática chef já cozinhou para a própria presidente do país, Michele Bachelet. Márcia, além dos pratos internacionais, aproveita os produtos da região para preparar maravilhas, como o patê de castor, o carpaccio de guanaco ou os doces de ruibarbo, delícias que nosso paladar agradece.

Márcia tem sua própria horta, da qual saem vegetais cultivados no quintal do hotel. E os restos de comida viram compostagem e adubo natural, sem a necessidade de utilizar agrotóxicos. A preocupação por um turismo sustentável é prioridade para as autoridades locais.

Navegar é preciso nos canais “fueguinos”

Baía Mejillones tem currais de pesca
e abrigos de canoas, sinais da vida yagán.

A história marítima da região também tem nomes de peso. Fernão de Magalhães é só o mais conhecido, mas não o único a percorrer os meandros marítimos tortuosos da Terra do Fogo. Thomas Cavendish, Sir Francis Drake, Pedro Sarmiento de Gamboa, John Byron, James Cook, Louis Antoine de Bougainville e Jean François La Pérouse navegaram pelas águas “fueguinas” e patagônicas.

Hoje um dos passeios mais solicitados pelos estrangeiros que visitam Navarino é a navegação pela Cordilheira de Darwin, que segue à risca o trajeto do Beagle.
Vir até aqui e não navegar os canais fueguinos é como ir a Nova York e não ver a Estátua da Liberdade.

Para realizar esta viagem hoje está o Iate Victory, um fiel schooner, réplica de uma embarcação de carga de 1870. Construído em Cipreste das Ilhas Guaitecas está desde ,1986 soltando suas velas ao vento e desafiando
os mares austrais. Tem uma viagem na medida de cada viajante. Navegante empedernido e apaixonado pelo mar.

O programa

As Geleiras do Fim do Mundo o fará percorrer a mesma rota que Darwin fez nestas latitudes. São seis dias de viagem, nos quais se percorre a Cordilheira de Darwin e suas inúmeras geleiras.

Se acha que esta é uma overdose de navegação escolha o roteiro Na Rota de Darwin, passeio light de dia completo que percorre o Canal Murray, a Ilha Button e Puerto Wulaia, um dos pontos arqueológicos mais importantes da região, e ainda muito pouco explorado. O serviço de bordo é um espetáculo à parte. Excelente comida e os melhores vinhos, chilenos, claro.

Amor à cultura e à natureza

Pica-pau gigante patagônico: ave
rara pode ultrapassar 25 cm.

A Ilha Navarino fica no território do Cabo Horn, um destino turístico que não é para qualquer viajante. Exige sede de cultura, amor pela natureza e, principalmente, um espírito que não tenha perdido a capacidade de se surpreender com as coisas mais simples, como o musgo que nasce no tronco úmido ou os quase impenetráveis bosques de carvalho que decoram as colinas.

Estamos numa das 37 ecoregiões mais prístinas do planeta e aqui a consciência dos guias de turismo sobre este assunto às vezes até exaspera. Mas assim deve ser, pelo bem de todos.

Declarada Reserva da Biosfera pela Unesco em 2006, a região do arquipélago do Cabo de Hornos é um dos últimos territórios virgens do planeta. São 4,9 milhões de hectares, entre áreas marinhas e superfícies terrestres onde há campos de gelo, geleiras, canais, cordilheiras, bosques, mangues, rios e lagos, fauna e flora e uma riquíssima história e arqueologia.

Na pequena cidade de Puerto Williams, o Museu Martin Gusinde é de visita obrigatória. É onde se pode saber mais, por exemplo, sobre a história dos nativos yaganes, tão falados pelos guias locais. Eles chamaram este território de Hualalanuj e, estima-se, chegaram a ser mais de 15 mil habitantes.

Considerado o povoado mais austral do mundo, os yaganes eram canoeiros, caçadores, pescadores e recoletores nômades. Hoje podemos visitar centos de sambaquis.

O mais antigo tem 7.500 anos e se encontra em Punta Guerrico, no costão norte de Navarino e, como todos os sambaquis da ilha, são Monumentos Nacionais e estão sob proteção do Estado. Outros sinais claros da vida yagán são os abrigos de canoas e os currais de pesca, como os da Baía Mejillones.

Opções para quem não gosta de navegar

Acima, bosque de carvalho exibe diferentes espécies e cores surpreendentes. Abaixo, o quitral, um tipo de fungo que vive nas árvores,
é uma das espécies do curioso bosque em miniatura.

Se navegar não é seu forte e você se sente melhor com os pés bem postos na terra, não deixe de percorrer os bosques em miniatura do Parque Etno-botânico Omora, uma iniciativa que envolve vários órgãos de conservação e uma ONG de prestígio internacional.

Este é um passeio surpreendente, onde se pode observar algumas das 818 espécies de musgos, liquens e fungos que existem na região do Cabo Horn. Estes bosques são únicos no mundo e, com o acompanhamento dos excelentes guias do parque, será muito difícil não se apaixonar por este paraíso vegetal no fim do continente americano.

Além de ver literalmente com lupa espécies da vida vegetal de formas maravilhosas e complexas, aprendemos a distinguir os diferentes tipos de carvalho patagônico, como o coigüe, o ñirre e a lenga, ou a árvore sagrada dos nativos, o canelo.

A Ilha Navarino é também o paraíso dos pe,scadores esportivos. Há rios, lagoas e lagos até hoje quase inexplorados, onde a pesca é praticamente uma certeza. A poucos minutos do centro da cidade ou, para quem tem espírito de aventura, a mais de seis horas de caminhada.

Pode-se chegar também de helicóptero, uma modalidade que está sendo, a cada dia, mais procurada pelos abastados amantes do flyfishing catch and release, ou a pesca com mosca de pescar e soltar. Um dos lugares de melhor pesca e o Lago Navarino. Outros lagos com boa pesca são o Windhold, o Rilusheajan e a lagoa Rojas.

E ainda há muito o que se fazer na Ilha Navarino, como as caminhadas pela trilha do Cerro Bandera, que tem duração de três horas, ou o Circuito Dentes de Navarino, uma das Rotas Patrimoniais que formam parte do projeto Trilhas do Chile, desenvolvido para conhecer, caminhando as belezas e sítios históricos de todo o país.

O circuito Navarino tem 53 quilômetros, com trechos cuja média é de cinco horas de caminhada diária. Pode-se escolher as cavalgadas, ou um simples passeio de bicicleta pela cidade, dando uma parada na Vila Ukika, onde vivem os descendentes da comunidade yagán.

Ilha Navarino e toda a região de Cabo Horn é uma caixa de surpresas. Incrível que um lugar tão distante e praticamente desconhecido até nos guias turísticos, hoje esteja se convertendo em destino prioritário para aqueles que desejam pôr seus pés onde ainda pouquíssimos tiveram a sorte de pisar.