Vacas loucas, cientistas nem tanto

A 1.ª ocorrência da “síndrome da vaca louca” gerou um pesadelo socio econômico para os ingleses há cerca de uma década e meia atrás. Milhões de animais sacrificados e uma centena de vítimas humanas. O susto se repetiu – ainda em micro proporção – aos seus incondicionais parceiros americanos a partir do Natal/2003 nos arredores de Seattle. Tempos, pois, de os brasileiros – detentores do maior rebanho bovino do mundo – colocarem as barbas de molho. Molho de vegetais, por precaução. No início de 2001 o Canadá – para nos fragilizar dentro da disputa em licitações internacionais para a provisão de jatos de pequeno porte – criou embaraços ao Brasil com o alegado (desmentido) de uma ocorrência similar por aqui.

Tecnicamente definida como Encefalopatia Espongiforme Bovina (EEB) ou ainda variante da SCJ – síndrome de Creutzfeldt-Jacob (casos humanos) ou de “scrapie” (casos ovinos) a base molecular causadora da enfermidade é atribuída a um polímero natural até relativamente simples: um príon ou proteína. Esta é comparativamente minúscula se defrontada com vírus, bactérias, fungos e protozoários, todos eles também implicados em patologias penalizantes do homem, da vaca e da ovelha, mas cujas estruturas e dimensões moleculares conjunto funcional – são muito maiores atingindo arquiteturas de uma célula e de um tecido. Dada a característica neurodegenerativa, EEB e SCJ são temíveis. Ter um enfarte ou braço amputado até pode ser suportável mas imaginar o próprio cérebro como utilitário esponjoso para lavagem de louças, post-mortem, nem pensar !.

Enquanto não se elucida convincentemente o mecanismo de infecção, persiste a idéia de que o processo digestivo de carnes ou ossos é a via de entrada do príon. Isto apesar do potente mecanismo de degradação protêica disponível nos animais através do qual o alimento protêico é convertido em aminoácidos livres para o metabolismo e remontagem da plástica corporal. Há que se supor então que a bateria usual de proteases ou enzimas proteolíticas, no caso do trato digestivo deste trio de animais-vítima, pode dar conta, num par de horas, de uma picanha, capim ou ração, mas não dispõe de especificidade para reconhecer a particularidade estrutural e organizacional do príon. Este deve ser então imune à pepsina do estômago, da tripsina e quimotripsina do pâncreas e outras enzimas auxiliares. Bioquimicamente se pode especular que a tal pequena proteína desta síndrome está intimamente (covalentemente) ligada a cadeias de açucares que então lhe conferem resistência ao ataque das proteases convencionais. Mas não frente a uma enzima digestiva para certo tipo de proteínas ditas queratinas. As mesmas que servem para formatar e sustentar os cabelos, unhas, penas e outros tecidos fibrosos. Sendo natural o polímero queratina (substrato), igualmente natural é uma enzima digestora que lhe despolimeriza, a queratinase (catalisador). Razão pela qual um corpo animal enterrado é até rapidamente consumido pela flora microbiana do solo até a forma nua de esqueleto, sem os ditos cabelos, unhas ou penas.

Vacas loucas numa ponta, cientistas na outra É exatamente o que recentemente ocorreu na parceria entre biotecnólogos da avicultura da Universidade Estadual de Carolina do Norte nos USA, mais aqueles de uma pequena empresa incubada na mesma universidade (BioResource International) e mais outros do Centro de Controle para Doenças Animais, na Holanda. Convincentemente demonstraram que uma “inocente” bactéria, parente do temível agente bioterrotista antrax, por eles antes utilizada para digerir penas de galinha (a ser reaproveitada em ração animal), é capaz de degradar, in vitro, partículas do príon da síndrome da vaca louca, tornando-as indetectáveis. Além desta estratégica enzima dita então queratinase, a maior parte do equipamento enzimático digestor desta benéfica bactéria é de longa data bem conhecido dos bioquímicos quando é, por outro lado, empregado para produzir detergentes para roupas (remoção de manchas de sangue e leite) ou mesmo para hidrolisar amido para a indústria de adoçantes.

Assim (sobre)vive e viceja a ciência. Juntar dois fatos, desencadear o terceiro. A descoberta logo deve se tornar uma ferramenta biotecnológica de muito interesse para a pecuária de corte. Um presidente belicista teve no mesmo mês por um lado o azar da ocorrência do caso da “vaca louca” e por outro a notícia da descoberta, por cientistas seus concidadãos, aqui brevemente comentada. Uma potência (Nação de fato) se constrói assim. Com ciência e tecnologia. Infelizmente parte disto também aperfeiçoa mísseis que mais facilmente permitem acesso a mais barris de petróleo não obstante o fato atenuante da derrubada de um ditador sanguinário.

José Domingos Fontana

(jfontana@ufpr.br) é pesquisador 1-A do CNPq, 11.º Prêmio Paranaense em C&T, é fundador do 1.º Laboratório de Quimio/Biotecnologia de Biomassa do Paraná na UFPR, onde é ainda docente e orientador de graduandos e pós-graduandos na temática multidisciplinar de Biotecnologia no Departamento de Farmácia.

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