Os gens e o (nosso) gênio

Aos poucos e através de uma locomotiva antropo sociológica chamada “teste de paternidade”, a Biologia Molecular foi permeando a capacidade de entendimento da população em geral. A polêmica questão dos transgênicos também ajuda o processo de compreensão de como uma quantidade infinitamente pequena de material biológico, desde que contenha DNA * Ácido DeoxirriboNucleico intacto ou inteligentemente fragmentado (caso do uso das enzimas de restrição) pode servir de ponto de partida para uma amplificação ultra-eficiente in vitro e a partir daí o registro da imagem dos resultados, finalizando com a inequívoca identificação da fonte. Em linguagem mais corriqueira, um DNA particular atua como modelo inteiro de parede constituída de 4 diferentes tijolos (as bases nitrogenadas A,T; C,G) mas a escultora de laboratório analítico (a enzima bacteriana Taq polimerase) usando os mesmos tipos de tijolos avulsos (desoxiribonucleotídios doadores) constrói apenas um determinado e mui pequeno segmento de tal parede já que seu “cimento” (“primer”) é adrede escolhido para co-patrocinar tão somente a montagem de tal segmento desejado. Havendo estes submicroscópicos tijolos avulsos em grande quantidade, o trabalho concertado da operária escultora e seu “cinzel”, responde à altura : milhares e milhares de unidades do segmento são construídas em apenas alguns minutos. Daí o nome da técnica : PCR * Reação em Cadeia da Polimerase. No caso do homem (30.000 genes ou paredes linearizadas na forma de fitas helicoidais duplas cujo conjunto faz o genoma inteiro; : 3 bilhões de tijolos quadri-tipos), uma única unidade do segmento gerado seria indetectável pois teria apenas uma ou poucas dezenas de tijolos, mas várias milhares de cópias já são facilmente visíveis com a ajuda de um corante impregnador (laranja de acridina; fluorescente) se orientadas a migrar em acordo a seu tamanho sob influência de um campo elétrico (eletroforese) e de uma câmera Polaroid ou digital para o devido registro fotográfico.

Contados em curtíssima prosa os genes, vamos ao gênio em prazerosos versos.

Veio à luz em Curitiba. Freqüentou o Anjo da Guarda e depois o Positivo. Graduou-se em Farmácia pela UFPR. Iniciou o mestrado na Bioquímica da UFPR, mas na passagem do primeiro alazão selado ouvido o orientador, Prof. Aguinaldo Nascimento que o qualifica como uma pessoa de fácil trato, tranqüila mas que não consegue disfarçar a brilhante inteligência abandonou a dissertação mas faturou os créditos na forma de um título de Especialista. Mantém o alazão até hoje : a Disciplina de Bioquímica do Curso de Farmácia da PUCPR. Também colecionou aprendizado em algumas incursões à Unicamp com o Prof. Aníbal Vercesi. Mantém um portal com todas suas boas aulas de Bioquímica Básica e Clínica (um pesquisador generoso reparte sua cultura; nunca a criptaliza). Apoiado por uma bolsa da Capes e pelo Prof. F. Bortolozzi,, Pró-Reitor de Pesquisa da PUCPR, afivelou as malas e aterrisou em Montreal (McGill University; 7 hospiitais-escola !) para de lá, saltando a cerca do Mestrado, vestir diretamente a beca de um Doutorado. Concluiu a proeza sob a segura e qualificada orientação do Prof. Erwin Schurr, em novembro de 2003. Com honras, pompas e circunstâncias. No retorno, breve parada em Los Angeles, Califórnia, para ser galardonado com o prêmio “Jovem Doutor” do 53.º. Encontro Anual da Sociedade Americana de Genética.

A maior proeza** do moço foi todavia encabeçar (como primeiro autor) um artigo na provavelmente mais prestigiosa revista internacional.

Nature vol. 427 no. 6975 pág. 571-660, de 12 de fevereiro de 2004). Dentre os 22 parceiros que lá figuram, o nosso gênio foi distinguido com a posição ímpar. Isto nunca se dá gratuitamente no meio científico. Se assim procedeu seu orientador canadense é porque o jovem cientista o fez por merecer no acirrado regime de competição com seus pares com gente muito qualificada até da Fiocruz e do Inca (caso dos 3 Moraes que ali também são co-autores, Milton, Maria e José). Se fora pouco, outra publicação casada foi acolhida por outra revista científica gêmea (Journal), Nature Genetics, vol. 33(3), pág. 412-415. Novamente o moço se repete como 1.º autor dentre 10 colegas de laboratório. O tema em ambas: a elucidação de que gens estão especificamente associados à susceptibilidade à hanseníase (antes conhecida com o assustador nome de lepra) usando como modelo a população de um país penalizado, além do saldo de uma guerra de ocupação, com esta enfermidade. Mais detalhadamente, famílias vietnamitas doentes e incidentalmente carregando determinados grupos de genes a mais do que os 50% aleatórios esperados da contribuição materna ou paterna. Mundo todo, a cada ano, há 700.000 vítimas da temível bactéria bacilar Mycobacterium leprae, agente etiológico da hanseníase. O Brasil é vice-campeão (40.000 casos / ano), nesta triste lista, logo após a Índia. Mais da metade dos 180 países filiados à ONU tem vítimas da temida enfermidade. Os dois submundos de sempre.

Mérito maior na questão : é a troca de um único tijolo na imensa parede genômica humana que fez aquela população vietnamita se tornar até 5 vezes mais susceptível à doença degradadora da pele e dos nervos de tecidos periféricos. Mais: esta discretíssima mudança também está implicada com o Mal de Parkinson, degeneração cerebral que atinge já um número imensamente maior de pacientes mundo afora. Orientais e ocidentais. Projeção esperada : identificada uma população susceptível, mais facilmente ela poderá ser protegida. Prevenir, neste caso até por humanitarismo e solidariedade, é impositivo para não ter que remediar, embora os instrumentos terapêuticos sejam eficientes, ficando todavia o estigma social. Outro potencial desdobramento da descoberta : uma vacina de última geração. Tudo muito orgulhosamente paranista e paranaense.

Ah ! o nome do nosso gênio em genes: Marcelo Távora Mira. Nas poucas horas de lazer deixa fluir uma outra faceta (também muito boa) de seu modo de ser: é um saxofonista vidrado em “My funny Ballantines” . Segundo o pai, o insuspeito também Prof. Antonio Carlos, Marcelo “arrepia” bem a palheta do sax tenor. Não custa acreditar nesta virtude adicional. Sempre sobra algum defeito. Talvez seja, também como nós outros, mais um atleticano. Em tempo: pai e mãe contribuem, cada qual, com 50% do DNA nuclear do(a) filho(a). No DNA da mitocôndria, organela “Itaipu” de cada célula, é a mãe, apenas, que entra com os 100%. Mira-filho não vai poder deixar esta “energia” extra para seus herdeiros.

(*) nem anglofilia nem xenofobia; o Inglês segue reinando : os acrônimos originais correspondem a DeoxyriboNucleic Acid e Polymerase Chain Reaction.

(**) sem plagiar a Pitonisa de Delfos: está a meio forno outra proeza semelhante em gestação no solo paranaense. Tem tudo para cristalizar logo a seguir.

 

José Domingos Fontana é pesquisador 1-A do CNPq, docente e orientador de Pós-Graduação nas Ciências Farmacêuticas da UFPR, pós-doutor pelo NRC-Ottawa-Canadá, Comenda Nacional de Mérito Farmacêutico (CFF, 2002) e 11.º Prêmio Paranaense em C&T (1996).

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