Cometa Halley também foi homenageado

Apesar do domingo de Carnaval em 1910 ter ocorrido em 6 de fevereiro, o cometa Halley não deixou de ser homenageado no dia 30 de abril, um sábado, com um baile organizado pelo Clube dos Fenianos.

Um longo edital de convocação para o baile foi publicado nesse mesmo dia no Jornal do Brasil, no qual, após uma rápida apresentação sobre o cometa que nos visitava, Bouvier, o secretário dos fenianos, comentava ironicamente:

?Fenianos!!! Palpita à vista, quase a olho nu, o formidável vagabundo dos espaços que o sábio Halley deliberou perfilhar no registro civil da astronomia.

Esperando a cauda reluzante, vem apreciar as festas gongóricas que passam no mundo… Sublinhar o progresso dos canhões (salvo seja) dos dreadnoughts  colossos e dos monumentos brônzeos inaugurados e por inaugurar!!…

E… enquanto a humanidade, de nariz em riste, sonda o firmamento e… embasbacada fica diante da luminosidade trepidante do caudaloso astro

Deixemos, almas terrestres

à procura de astros tais;

antes estrelas eqüestres,

ou estrelas teatrais!!…?.

A referência é a encouraçados adquiridos pelo governo brasileiro denominado dreadnoughts, ou seja, aqueles que nada temem.

Para compreendermos a segunda parte da convocação é necessário estar a par das designações usadas na época para nomear as diversas sociedades carnavalescas então existentes, bem como os seus adeptos. Dentre os mais antigos clubes da cidade, que sobrevivem até hoje, existiam na época os Tenentes do Diabo, os Democráticos e os Fenianos. Os adeptos dos Tenentes do Diabo eram apelidados de baetas, designação proveniente da tradição portuguesa que assim chamava o diabo, com suas roupas vermelhas de baeta como se encontra em Ramalho Ortigão. Desse modo, o diabo (baeta) passou a ser o símbolo do clube; sua sede, a caverna; suas cores, o vermelho e o preto. Os Democráticos, cujos aficionados eram denominados de carapicus (uma espécie de peixe) e sua sede o castelo, tinham adotado para suas cores o preto e o branco. Finalmente, os Fenianos, cujo nome era tirado à designação que se dava aos revolucionários irlandeses que, desde 1858, lutavam contra o domínio britânico; intitulavam-se gatos e sua sede era o poleiro, usado como cores oficiais o vermelho e o branco.

Agora, voltemos ao edital, onde os Fenianos, depois de já terem gozado ironicamente os Democráticos, se voltam contra os Tenentes do Diabo:

?Aquela baeta, gente

 De que ninguém faz mais caso

 Diz por aí que é tenente

 E nem é soldado raso!…

 Faltando ao rigor da norma

 Não entra nesta pendenga

 E por ser toda… capenga

 Não formal!…

 E agora falando sério,

 Eu digo à gente baeta:

 – Ponha o olho no cemitério

 E o seu nariz no cometa!!!

 E dito isto, é para moer a caterna desclassificada,

 Fenianos!!!

 ao baile

 A apoteose halleyluiática e celestial

 dos bravos gatos pretos.?.

A anunciada passagem da Terra pela cauda do cometa deu motivo a uma série de especulações na imprensa mundial quando se sugeriu um provável envenenamento da atmosfera terrestre pois sabia-se que a cauda dos cometas é composta de cianogênio, gás mortal. Daí o conselho irônico dos fenianos aos adeptos dos Tenentes do Diabo: ?Ponha o olho no cemitério / e o seu nariz no cometa!!!?. Assim, enquanto os baetas estivessem preocupados com a morte, os gatos pretos estariam em seu baile numa apoteose halleyluiática.

Em 1910, os carnavalescos, com seu espírito alegre e sempre jocoso, improvisaram uma letra cuja música foi adaptada da polca No bico da chaleira, de autoria de Juca Storoni (João José da Costa Jr.), sucesso do Carnaval de 1909. De fato, aproveitaram-se nessa letra as palavras de duplo sentido para inculcar um fundo erótico próprio do Carnaval. Criou-se, desse modo, uma verdadeira apoteose halleyluiática e celestial, ao som dos versos:

 ?Lalá me deixa espiá nessa luneta

 Eu sou do grupo que gosta do cometa

 Cometa do Halley, cometa do ar,

 Levanta a cauda que eu quero espiar?.

Tendo em vista os maiôs cavadões de hoje, o último verso perdeu muito do seu sentido malicioso. Esta música, restaurada pelo Museu de Astronomia e Ciências Afins, no Rio de Janeiro, foi usada na ambientação de sua exposição Halley- Rio 1910.

O Carnaval do ano seguinte aproveitou a esplêndida aparição do cometa em seus carros alegóricos, fantasias e músicas.

Uma das grandes sociedades, o Clube dos Fenianos, incluiu o Halley em seu cortejo. Coube ao artista Fiúza Guimarães, encarregado da elaboração dos prétitos da sociedade, conceber a alegoria do carro intitulado ?O Beijo do Hal-ley?. Numa delirante composição de ouro e prata, a Terra, no seu rodopiar diário, voltando-se ora para outro, deixava-se beijar impudicamente por esse grandioso vagabundo dos espaços interplanetários.

Outra grande sociedade, o Clube dos Democráticos, também incluiu em seu cortejo a alegoria ?A Dança dos Cometas? de autoria do artista catarinense Publio Marroig, um dos grandes rivais de Fiúza, no concurso que o vespertino A Notícia patrocinava para escolha do melhor cenógrafo que confeccionasse os préstitos da terça-feira gorda. Marroig mostrava os cometas ?espadanando numa vertigem féerica de luminosas centelhas?.

Outras sociedades participaram ainda do desfile. Uma delas foi o Clube Carnavalesco Rejeitados de S. Cristóvão, cujos foliões exibiram um préstito crítico-alegórico, com traços eróticos, sobre o cometa, ao mesmo tempo em que cantavam a letra que tinha como música a polca de Juca Storoni.

Não foram somente as grandes sociedades que usaram o Halley em suas alegorias no centro da cidade. No Méier, um dos pontos capitais do Carnaval dos subúrbios, o cenógrafo Augusto Cordovil elaborou, para os Progressistas Suburbanos, um carro alegórico no qual se via uma estrela com grande cauda.

Os efeitos do cometa se fizeram sentir ainda no Carnaval de 1912, quando, no ?domingo gordo?, o famoso Ameno Resedá desfilou pela Avenida Central com o enredo ?Corte Celestial?, onde figuravam o Sol, a Lua, Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e o cometa Halley, todos em trajes caprichosamente desenhados pelo caricaturista Amaro Amaral. O astrônomo inglês Edmond Halley estava representado pelo bailarino Juvenal Nogueira, enquanto a porta-estandarte Semíramis personificava a Lua, e o importante mestre-sala Mário Félix configurava o Infinito.

Uma vez livres da ameaça da cauda do cometa Halley que, roçando a Terra, poderia incendiá-la, como se dizia na época, os cariocas, com sua irreverência peculiar, adaptaram os seguintes versos a uma conhecida música:

 Dizem que o mundo vai se acabar,

 E eu vou morrer

 ?Dizem que os paus-d?água têm que

 Deixar de beber.

 Isto é impossível,

 Eu não posso crer,

 Por causa que os paus-d?água

 Nunca deixam de beber

 Eu não sou pau-d?água

 Eu não bebo não

 Mas elas ?frias? eu não deixo de beber…?.

Aqui ?frias? refere-se a cervejas terrivelmente geladas.

Ronaldo Rogério de Freitas Mourão é astrônomo, fundador e primeiro diretor do Museu de Astronomia e Ciências Afins. Autor de mais de 75 livros, entre outros , do O Livro de Ouro do Universo.

Consulte a homepage: http://www.ronaldomourao.com

 

Conclusão

Finalmente, gostaria de lembrar este texto pouco conhecido de Albert Einstein: ?Os homens não vivem só de pão. É possível que as pessoas não versadas nas ciências atinjam uma parcela da beleza e virtudes inerentes ao pensamento, com a condição de que este pensamento lhes seja tornado assimilável. Não devemos exigir que a ciência nos revele a verdade. Num sentido corrente, a verdade é uma concepção muito vasta e indefinida. Devemos compreender que só podemos visar à descoberta de realidades relativas. Além disso, no pensamento científico existe sempre um elemento poético. A compreensão de uma ciência, assim como apreciar uma boa música, requer em certa medida processos mentais idênticos. A vulgarização da ciência é de grande importância, se proceder duma boa fonte. Ao procurar-se simplificar as coisas, não se deve deformá-las. A vulgarização tem de ser fiel ao pensamento inicial?.

A leitura desse trecho seria suficiente para eliminar um pouco a incompreensão da importância da divulgação científica, mas Einstein continua: ?A ciência não pode, é evidente, significar o mesmo para toda a gente. Para nós, a ciência é em si mesma um fim, pois os homens de ciência são espíritos inquisidores. Mas não devemos esperar que todos comunguem das nossas concepções, e assim os profanos em matéria de ciência devem constituir objeto de uma especial consideração. A sociedade torna possível o trabalho dos sábios, alimenta-os. Tem o direito, portanto, de lhes pedir por seu lado uma alimentação digestiva?.

Assim como Einstein acreditou que a sociedade pede aos que guardam segredos a sete chaves, sejam científicos ou de natureza política, que liberem-na de uma forma bem digestível. (RRFM)

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