Cocaína e Crack variam potência de efeito

A fonte natural da cocaína são as folhas de um arbusto livremente cultivado pelas populações indígenas da Bolívia, Peru, e mais recentemente, Colômbia, a coca ou Erythroxylon coca. A palavra derivaria da etnia aimará "khoka", ou árvore. A variedade boliviana, huanaco, tem folhas maiores, marrom-esverdeadas enquanto a peruana, menores e de coloração verde-clara, mais ricas em teor dos alcalóides cocaína, anamil e truxilina (ca. 1%). A variedade cultivada em Java é mais potente, com um teor de alcalóides de até 2,5%, mas referida a ecgonina e não a cocaína.

A permissão que um imperador inca concedia a algum subalterno para a mastigação de coca era tida como a mais alta honraria indígena. Na Amazônia, cresce um arbusto assemelhado, designado de epadu, cultivado pelas tribos tucanas, tuiúcas, banivas, matis e macus. Na etnia tucana, a palavra "ahpi" tanto designa a droga quanto o leite materno, além da própria raça indígena. Artesanalmente, o indígena mastiga a folha para se isentar da sensação da fome e do frio, experimentar alguma euforia e boa disposição para o trabalho. Histórica ou estoricamente se atribui a grandes personalidades, como o psiquiatra Sigmund Freud e ao escritor Conan Doyle (criador de Sherlock Holmes), a condição de (moderados) cocainômanos. Neste elenco, também o papa Leão XVIII. Na modernidade, o ex-futebolista argentino Maradona é, sem dúvida, a personalidade mais estigmatizada pela mídia internacional em função de sua incorrigível dependência do vício, ora tratada em Cuba. Um farmacêutico, John Styth Pemberton, criou em 1886 um refrigerante baseado em noz de cola (cerca de 60 mg de cocaína por garrafa de 240 mL) e receitado como tônico para o cérebro e nervos. Estava criada a Coca-Cola, cuja enigmática formulação, que persiste até hoje, parece contemplar cafeína no lugar de cocaína, embora o extrato da planta, devidamente "descocainizado" (já a partir de 1906) em função dos questionamentos médicos) entre ainda na formulação no que diz respeito ao extrato vegetal original. Além da ingestão, a cocaína é auto-administrada por aspiração (nasal) ou injeção venosa, então com efeitos psicomentais muito mais enérgicos e imediatos.

Primária e externamente, a cocaína bloqueia a condução de impulsos nas fibras nervosas (sensação de amortecimento ou enregelamento). É vasoconstritora; logo, com alguma utilidade no controle de hemorragias ao que se soma a ação anestésica. Aspirada ou injetada atua tanto no sistema nervoso periférico (impedindo a reabosorção da noradrenalina e dopamina pelos nervos) quanto no sistema nervoso central, mimetizando as anfetaminas, portanto provocando agitação intensa. Como é rapidamente metabolizada pelo fígado, o efeito não ultrapassa uma hora. Doses elevadas consumidas regularmente causam sangramento do nariz e coriza persistente, além de palidez, suor frio, convulsões, desmaios e parada respiratória. A quantidade necessária para provocar uma overdose varia de uma pessoa para outra, e a dose fatal vai de 0,2 a 1,5 grama de cocaína pura. A possibilidade de overdose, entretanto, é maior quando a droga é injetada diretamente na corrente sangüínea.

O efeito da cocaína pode levar a um aumento de excitabilidade, ansiedade, elevação da pressão sangüínea, náusea e até mesmo alucinações. Uma característica peculiar da psicose paranóica, resultante do abuso de cocaína, é um tipo de alucinação na qual formigas, insetos ou cobras imaginárias parecem estar caminhando sobre ou sob a pele do cocainômano.

O crack corresponde a uma manipulação química da cocaína, inventada pelo "baixo clero" das comunidades viciadas. O nome vem do inglês "estalido" ou barulho da pedra sendo incinerada. Com a droga bruta é feita uma pasta com água e um agente alcalino (bicarbonato ou carbonato de sódio). Seca e fragmentada, gera então as pedras de crack. Fumadas, com o auxílio de cachimbos, latas de refrigerante ou outro apetrecho para aspiração, despeja a forma de alcalóide livre (muito mais volátil) diretamente na corrente sanguínea. O efeito é rápido, mas é terrivelmente potencializado. A repetição descontrolada pode levar ao óbito, dentre outras causas, por parada cardíaca. A sensação de plena euforia efêmera (daí as repetidas sessões de intoxicação) é substituída por depressão profunda. O viciado é irritadiço e predisposto à violência. Com a constância de uso surge o desinteresse sexual e risco de acidentes vasculares dada a intensa vasoconstrição.

Droga pertinente ao grupo dos alcalóides, isto é, com função nitrogenada ou básica (v. figura), a cocaína tem comportamento bivalente frente aos solventes mais comuns. Na forma de base livre, em meio neutro ou alcalinizado, é solúvel em álcool e outros solventes orgânicos como o éter etílico (e daí os tambores visibilizados pela vigília aeronáutica nas "fábricas" da selva amazônica) enquanto que em meio ácido dá os sais tipo cloridrato, sulfato e fosfato, mais solúveis em água. A freqüente aspiração nasal leva a feridas cruentas e mesmo à ruptura do septo nasal.

Nota: É dever intransferível dos pais ou responsáveis a vigília dos filhos ou dependentes menores quanto ao risco e prática de uso de drogas. Comportamentos suspeitos, insônia, más companhias, sinais de picadas nos barços e pernas, olhos avermelhados são sinais preocupantes.

José Domingos Fontana (jfontana@ufpr.br) é professor emérito da UFPR no Departamento de Farmácia, comenda nacional de Mérito Farmacêutico pelo CFF e Pesquisador 1A do CNPq. 

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