Clonagem: a reedição da vida avança

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A ovelha Dolly.

José Domingos Fontana

Novidades de Edimburgo, na Escócia, em 1998, assombraram o mundo. Ian Wilmut, um ruivo escocês do Rosslin Institute, tirando melhor partido do conhecimento acumulado em Engenharia Genética, manipulou células de uma glândula mamária de ovelha, removeu seu núcleo e com ele todo o DNA para naquele vácuo citoplasmático microinjetar DNA de outra célula também de tecido fêmea. O material biológico bem aninhado em meio apropriado tomou um curso bem conhecido de uma célula fertilizada: mórula, blástula e mais adiante a diferenciação biológica plena até um embrião-fêmea. Nascia o primeiro mamífero criado artificialmente em laboratório sem o concurso de uma contracélula masculina e apenas a partir do DNA de uma célula adulta: a ovelha Dolly.

O nome foi concebido como uma homenagem ao mais voluptuoso par de seios do outro lado do Atlântico: a cantora country Dolly Parton, de quem recebemos impacto audiovisual no intervalo de um evento em Biotecnologia numa das viagens a Knoxville, no Tennessee. A Embrapa repicou, ano depois, com o clone perfeito da vaquinha "Vitória", a qual já experimentou sua primeira maternidade, concebendo "Glória" através da via sexual natural: esperma do touro simental Zendher. Na berlinda da Biologia Molecular brasileira: Rodolfo Rumpf. Um feito posterior, no entanto mais completo do que o escocês, pois Dolly morreu em fevereiro de 2003 em ato eutanásico motivado por suas doenças precoces: infecção pulmonar e artrite, aos 6 anos de idade, portanto metade da idade média que experimentam as ovelhas de parto natural. O exame citogenético mostrou que Dolly, precocemente envelhecida, apresentava telômeros (extremidades cromossômicas) mais encurtados. De qualquer forma um resultado bem melhor do que as outras centenas de simulacros de ovelha que se perderam nas tentativas menos bem sucedidas de Wilmut. O médico e seus monstros inerentes ao risco de mimicar o que sempre foi tarefa semidivina. A vaquinha nacional, ao contrário, foi clonada a partir de células mortas do tecido envoltório dos óocitos (pré-óvulos): cumulus. Ressurreição, portanto, da vida, guiada pelas regras biológicas após um ato de amor.

Em palestra à agitada garotada do Colégio Divina Providência, pudemos desfrutar de inesperados 30 minutos de silêncio e atenção contando o 1.º fato e lhes indagando ao final: e se Wilmut tivesse escolhido um lobo para sua experiência? Parecem ter entendido o espírito da pergunta do pastor-professor.

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Fig. 1 – as clonadas maninhas felinas Tabouli & Baba na lente de Victor Fischer, da Polaris.

No início da década, um sofisticado e pioneiro Simpósio do Agribusiness reuniu autoridades nacionais e internacionais em um hotelão 5 estrelas em SP. Na oferta do pagamento da taxa de inscrição de R$ 2,6 mil pela UTP, seguimos à Paulicéia para observar as novidades em Transgênese Vegetal a pedido do então e saudoso reitor Sydnei Santos. Relatórios feitos à UTP e à UFPR; como resumo da ópera e seguindo as apresentações da Monsanto (cujo diretor de Biotecnologia, na época, era um agrônomo diplomado por Bandeirantes-PR como sai gente boa daquela escola!) e suas concorrentes, pudemos (o articulista e o quase onipresente Jacob, da Seab-PR) degustar a "pérola" do evento: o "governo" e seu alegado da inexistência de sementes transgênicas no País e o fazendeiro gaúcho da última fila fazendo o contraponto se estávamos em Marte ou se o Sistema Solar da Transgenía Brasileira incluía ou não o seu torrão natal: o Rio Grande do Sul, que já transbordava em soja RR. Constrangimento geral com o "tchê". Um mecanismo eficiente de plantio semimecanizado de soja é colocar na linha de apoio da carroçaria do caminhão justamente aqueles sacos de semente que foram muito apropriadamente objetos do furador para a coleta de amostragem. O resultado são aqueles sabidos sagus amarelinhos bem visíveis à beira da estrada na época de exportação (ah, Calcutá; oh, Paranaguá!). Sementes viram mudas. Mudas, num terno de meses, frutificam. Sementes argentinas, uruguaias ou paraguaias (com suas plantações já muito transgenizadas) devem ser, pois, as mães da soja transgênica brasileira. Uma questão que formulamos às duas maiores corporações sementeiras no simpósio gerou muita polêmica mas não respostas convincentes: o que impediria, em futuro próximo que, além da polinização anemofílica (ventos) ou mediada por insetos, o tecido vegetal transgênico da soja RR (ou do milho-Liberty-Bt, unitrato resistente a insetos, lá também apresentado pela concorrente, a Syngenta) se protoplastificasse (perdendo a parede celular péctico-ligno-celulósica pela ação de enzimas de microrganismos do solo e da água) e liberasse, mais facilmente, o novo gene para protoplastos de outros tecidos receptores (e.g., capim-tiririca), universalizando então o caráter gênico da resistência ao herbicida glifosato?

clone2.jpgPossível migração do uni-trato gênico, pois o neo-gene se acha na planta inteira. Já há o caso canadense do pequeno agricultor "inundado" pela transgênese da canola vizinha. Ganhou a causa em tribunal internacional.

A Transgênese Vegetal (elaborada alhures) gerou a história e estórias (aqui) com a hiperexploração do conteúdo de nicotina em tabacos gaúchos, mas nada que descarte o contra-argumento da pane que sofreriam as pesquisas necessárias, se exagerado o peso das proibições. O bom senso se encarrega dos vetos. Nobel quando sintetizou a dinamite tanto tinha na cabeça seu uso para arrebentar rochas quanto para dinamitar a represa delas resultante. E isso, apesar dos ruídos e afogados, como os argentinos atribuíam ao bruxo-militar da Casa Civil brasileira. A Ciência não é neutra quando interage com a Política, o Poder, a Religião e as necessidades do Povo. A propósito, o que vimos em recente viagem à Argentina e ao Uruguai, cujos campos estão rendendo safras recordes, é a Monsanto apresentar a fatura acumulada de uma década mediante cobrança nos portos de embarque das safras. Como diria algum filósofo bretão there is no free lunch. No caso argentino são US$ 3/tonelada de grãos. Uma ninharia visto da ótica de uma saca de soja. Uma fortuna impagável, na visão das autoridades platinas, se escalonada para as centenas de milhões de toneladas oriundas das províncias argentinas nos anos pós-transgênese.

As clonagens têm feito história. Clona-se, mas se nega. Nega-se, mas se clona. Agora, em dezembro de 2004, se clonnaram mamíferos de estimação e se contou. Por módicos US$ 50 mil, no laboratório Genetics Savings & Clone, na Califórnia, a mamãe felina ganoushi Thaini cedeu uma parte ínfima de seu tecido para gerar (sem participação de qualquer bichano-macho) duas encantadoras gatinhas-filhas, Tabouli e Babá. Rajadinhas, bem olhudas e orelhudas como corresponde a qualquer felina que se preze. A inovação subjacente na nova técnica molecular é que o material genético usado foi de arquitetura macromolecular: a cromatina (DNA nativo polianiônico "empapado" com histonas ou proteínas policatiônicas protetoras). O procedimento oferece uma taxa mínima de resultados negativos ou animais deformados quando comparado com a manipulação e inserção de genes mais laboratorialmente esmiuçados.

Glossário:

"Roundup" e outras 11 marcas comerciais; é uma variante química do aminoácido glicina; tecnicamente fosfonometil-glicina ou glifosato. Fosfonato é raro na natureza (J.D.Fontana et al., Carbohydrate Research 143, p. 175-183, 1985. "Occurrence of AEP (AminoEtilPhosphonate) in the PR snail Megalobulimus paranaguensis". Herbicida de largo espectro que bloqueia a biossíntese do aminoácido relacionado e portanto das proteínas essenciais ao desenvolvimento de um vegetal. Soja RR: planta transgênica resistente ao glifosato, o que a diferencia dos vegetais naturais e ervas daninhas, sensíveis.

José Domingos Fontana (jfontana@ufpr.br) é professor emérito da UFPR no Departamento de Farmácia (2004), 11.º Prêmio PR de C&T (1996), Pesquisador 1A do CNPq (1990).

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