Apicultura: própolis, uma dádiva natural

Uma colméia é uma congregação animal de extrema organização, rigorosamente termostatizada a 32oC: uma rainha, encarregada única da reprodução durante um biênio, 200 zangões com a única função temporária (um mês) de doação de esperma e 200.000 fêmeas operárias estéreis, também com vida média mal que excedendo um mês mas com o encargo de todas tarefas domésticas e externas de coleta de insumos (néctar e pólen), seu processamento até mel, geléia real, cera (em glândulas especializadas do abdômen) e própolis, edificação da colméia, sua limpeza e defesa e nutrição dos hóspedes desde o berçário.

A rainha jovem controla a plebe obreira secretando um feromônio, o ácido hydroxidecenóico, mas não hesita em simplesmente liquidar quaisquer concorrentes ao trono incluindo a própria mãe, acelerando o processo sucessório logo no primeiro turno. Deposita nos favos cerca de 1.500 ovos ao dia para atingir a quota de 200.000 ao ano. Não há rasgos românticos no ato sexual que precede a fecundação quando a rainha coleta parcela selecionada do esperma em sua espermateca.

Cada macho seqüencial abandona o ato sexual devidamente emasculado e a perda de líquido corporal o leva à morte. Destino cruel para o séquito de “romeuzinhos eunucos” a serviço da “exclusiva julietinha”. Um ou outro sobrevivente do verão é devidamente expulso da colméia pelas operárias para sucumbir vítima da própria fome pois, apesar de exímio voador (o cortejo aéreo da rainha exige esta habilidade), não dispõe de aparato coletor de alimento e nem mesmo de ferrão para a defesa.

O pólen das flores, rico em proteína, supre a necessidade dos 10 aminoácidos essenciais para a colméia. O néctar, fonte concentrada de açúcares, atende a necessidade energética de todos; é convertido em mel, graças à evaporação do excesso de água, pelo incessante agito das asas das operárias, que ainda têm a função de ventilar a colméia. Combinado a um parcela do pólen constitui o “pão de todos”, exceto a porção nutricional especial, destinada apenas à rainha, a geléia-real, mais enriquecida em mel e outras secreções das glândulas bucais das operárias. Estas ainda sintetizam, para fins de defesa, um veneno constituído de melitina (proteína tóxica que lisa hemácias), hialuronidase (enzima destruidora de tecidos conectivos), fosfolipase A (enzima desagregadora da membrana plasmática), fosfatase ácida (provocadora de reações alérgicas) juntamente com histamina (irritante), razão pela qual a picada da abelha é tão dolorosa.

A operária é um reator enzimático volante: a sacarose do néctar, já durante a viagem de volta à colméia, vai sendo convertida em glucose e frutose através da enzima invertase, ou seja, até as formas açucaradas mais simples e imediatamente metabolizáveis. A operária é também a mais “letrada” da comunidade : exprime com notável precisão a compreensão do hexágono como figura geométrica e daí a uniformidade dos favos que ela edifica. Há uma intrigante isonomia entre o formato do favo e um anel químico presente em compostos naturais bioativos coletados na natureza (fig. 1) e concentrados na própolis.

A abelha retribui à planta o favor do néctar, levando parte do pólen de um sítio a outro, portanto intermediando, via polinização, a frutificação do vegetal e portanto sua perpetuação. No nível dos brotos das plantas e de secreções (exsudados) do caule, a abelha coleta o material resinoso que é destinado à elaboração da própolis. Esta é uma cola, quebradiça a baixa temperatura e experimentando fusão a partir de 30-35oC e que recebe a adição de cera elaborada pela própria abelha; é um material selante para a colméia, antisséptico para evitar infecções e infestações por bactérias, algas e fungos e até para embalsamar o cadáver de algum inseto invasor, inibindo sua putrefação.

A própolis, de coloração variando do amarelo até marron escuro-esverdeado, contem cerca de 55% de resinas naturais, 30% de cera, 10% de óleos essenciais e componentes menores como aminoácidos, hidrocarbonetose e vitaminas. A parte nobre está contida na matéria resinosa e nesta abundam os flavonóides e ácidos fenol-carboxílicos e seus derivados . É donde temos concentrado a pesquisa com a preciosa ajuda de estudantes de iniciação científica: “Lela” Rocha dos Santos (agora pesquisadora de “O Boticário”), Daniel Breyer, então da Farmácia-PUC-PR (ora gerente da Breyer & Cia Ltda – Produtos de Apicultura, de União da Vitória-PR) e mais recentemente de Juliana Adelmann (ora no Mestrado) e de Jonatahn Wohlke, ambos do Curso de Farmácia da UFPR. Delegamos aos dois últimos a missão de estabelecer, em bases científicas sólidas, a correlação química entre a flora visitada e a composição final da própolis. Dentre outros instrumentos, empregamos ferramentas da Biologia Molecular (colaboração inestimável dos Profs. Marco A. Krieger e Rodrigo Latado, do IBMP – Instituto de Biologia Molecular do Paraná, centrado no Tecpar) para estabelecer os perfis de amplificação nucleotídica de determinados grãos de pólen (que restam como inclusão ocasional na própolis) e comparativamente a outros tecidos das fontes botânicas onde a abelha faz a coleta da resina. A estratégia confiada a Juliana Adelmann é ratificar e aperfeiçoar os achados cromatográficos e eletroforéticos * que já permitiram estabelecer, em parceria com o prof. Fernando Lanças (USP-São Carlos) e os pesquisadores César Lenz e Natalício Leite, do Dest-Tecpar, a identidade química entre as flavanonas da própolis Breyer PP-4 e brotos do álamo. Intensa varredura é levada a cabo na bioatividade bactericida mensurada através da clássica técnica de difusão a partir de discos de papel em meio de cultura solificado com agar. Estamos ampliando este horizonte para própolis de zona de bracatingais com o auxílio do Presidente da APA – Associação Paranaense de Apicultura, Sr. Sebastião R. Gonzaga e mantendo a eletroforese capilar como metodologia analítica padrão.

Dezenas de aplicações medicamentosas da própolis estão arroladas na literatura científica, a maior parte a partir de alcoolatos (extratos a partir de etanol a 70% e variações em tormo desta porcentagem) : bactericida e bacteriostática, fungicida e fungistática, anti-viral, anti-inflamatória, anestésica, cicatrizante. Encontramos, a partir de uma partida de própolis fornecida pela Breyer Cia. Ltda. e colhida de colméias circunvizinhas a um reflorestamento exótico de álamos (Populus deltoides), um incomum enriquecimento em pinocembrina, uma flavanona que dentre outras aplicações, se presta à correção de deficiência hormonal. A Odontologia da Unicamp em Piracicaba, na pessoa de H. “Michel” Koo (orientado dos profs. Jaime Cury e Yong Parker) documentou a eficiente atividade anticariogênica de algumas partidas de próprolis brasileiras. Um sucesso na odontomídia yankee para onde seguiu o jovem pesquisador, sem riscos de morrer de sede nos desertos do Arizona, posto que para lá seguiu amparado por bolsa e firme oferta de emprego. Pesquisadores japoneses, a partir de própolis brasileira, isolaram o Cape (éster fenetílico do ácido cafêico; fig. 4), com intensa atividade anti-tumoral. Este efeito está descrito no livro “Natual Compounds in Cancer Therapy”, por John Boik. A inibição da carcinogênese de cólon através de própolis foi comprovada em ratos após injeção indutora de tumor com dimetilhidrazina. Trabalho da equipe de A.P. Bazo e D.M.F. Salvadori, na Unesp-SP, que tem a pessoa da professora. Cristina Marcucci, uma referencial nacional no tema.

A própolis, em função da diversidade dinâmica e dependente das fontes botânicas visitadas pelas abelhas, é por nós definida como o mais “formidável coquetel de bioativos naturais” (fig. 3) e cada amostra, geograficamente determinada, é um desafio para a Química e Farmacologia. Não é outra a razão do volumoso processo de exportação da produção brasileira de própolis que atende a demanda de países C&Tecnologicamente mais espertos, Japão e Coréia, dentre outros. Remetemos a matéria-prima, eles isolam os componentes nobres, formulam preparações farmacêuticas com alto valor agregado e documentam os achados. Não nos faltam os conhecimentos para fazer o mesmo ou até mais. Falta-nos apenas o adequado financiamento.

(*) 1. J. D. Fontana et al. (2000) “Propolis flavonoid profile by MCE Micellar Capillary

Electrophoresis and bactericidal action” Chromatographia (Springer-Verlag), vol.

52 (3/4) 147-151

2. J.D.Fontana, J.Adelmann, M.Passos, M.Maraschin,C.Alves & M.Lanças

(2004) “Propolis : chemical microheterogeneity and bioactivity”, chapter 20

Voltar ao topo