Tortura – capítulo IV

Para quem nunca havia colocado os pés em uma delegacia, a situação de Ademir era desesperadora. Jogado em uma cela, garantia sua inocência enquanto a ex-amante – Orlinda – insistia em acusá-lo. Pelo sim, pelo não, o delegado Rogério Haisi decidiu autuá-los em flagrante com base no artigo 211 do Código Penal, que prevê pena para destruição, subtração ou ocultação de cadáver. Os ossos de João Antônio tinham sido encontrados e esse era o fato concreto. O restante seria descoberto através das investigações. Ou, pelo menos, era o que deveria ter sido.

Em suas controversas acusações, Orlinda dizia até mesmo que o filho de Ademir, o jovem Adinei Pires da Rocha, havia presenciado o crime, pois tinha chegado no sobrado quando os dois homens brigavam. Adinei, que estava na casa da namorada, sem saber o que estava ocorrendo, foi detido e levado à delegacia. Ficou recolhido em uma sala por mais de três horas e não pôde ver o pai. O mesmo policial que prendeu seu pai -Mesquita – foi nomeado seu curador, para que pudesse ser interrogado. Negou ter presenciado qualquer assassinato e revelou à polícia que soube que sua mãe, Neiva, havia recebido cartas anônimas que denunciavam o caso do pai com Orlinda. Mais tarde, através de exames grafotécnicos, foi comprovado pelo Instituto de Criminalística que as cartas enviadas à Neiva tinham sido escritas pela própria Orlinda, que queria acabar, de uma vez por todas, com o casamento de Ademir.

No flagrante, Ademir se reservou o direito de falar só em juízo. Orlinda, por sua vez, abre a boca novamente e conta outra vez a história do assassinato. Numa busca no sobrado que João construía, foi encontrado um machado, suposta arma do crime. Submetido a perícia, não foi achada nenhuma marca de sangue na ferramenta.

Embora preso no dia 10 de março, foi somente no dia 13 que Ademir teve contato com um advogado, que recebeu seus pertences na delegacia e assumiu sua defesa. Este advogado, mais tarde, foi substituído por Cláudio Dallendone Júnior, na época um jovem e pouco conhecido criminalista, que distribuía cartões em delegacias para conseguir seus casos. Orlinda, sem dinheiro, teve advogados dativos (trabalham gratuitamente), que abandonavam a defesa alegando um motivo qualquer. Teve quatro até o dia do julgamento.

?Fui torturado?

Mara Cornelsen
Em seu local de trabalho, Ademir recorda, em lágrimas, as torturas sofridas.

Seis dias depois da prisão e de sempre alegar inocência, Ademir assina a confissão do assassinato de João Antônio.

Confirma a versão de Orlinda, mas diz que o corpo foi levado na madrugada de 28 de novembro para a casa da ex-amante, em seu Fusca – e não 15 dias antes da prisão de ambos, como ela alegou.

Diz também que o carro foi lavado em um posto de combustível e que ninguém perguntou a origem do sangue que manchava os bancos.

Hoje, cinco anos após ter ouvido do juiz a absolvição, Ademir, ainda mais franzino e de cabelos mais brancos do que na época das acusações, revela sem pudor:

?Fui torturado para confessar. Não desejo nem ao meu pior inimigo o que fizeram comigo. Sofri demais?.

Trabalhando no mesmo local de onde foi retirado há sete anos para ser levado à prisão, Ademir esfrega os olhos – de um azul profundo – e garante que seu grande erro foi ter se envolvido com Orlinda, mulher de seu amigo, e de ter se tornado vítima da vingança dela, ao deixá-la.

Louva a existência, a paciência e a fidelidade de sua mulher, Neiva, que apesar de ter sido traída, não o abandonou um minuto sequer.

Ela moveu céus e terras para conseguir dinheiro para pagar um bom advogado e foi peça fundamental no desfecho do caso.


Orlinda contraria perícia, e diz não lembrar de ter escrito esta carta.

* No próximo capítulo o leitor saberá detalhes das torturas sofridas por Ademir e como estão, hoje em dia, os acusados da violência física para obter a confissão.

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