Famílias que perderam parentes pedem justiça

O País está acompanhando o sofrimento das famílias dos jovens Gilmar Rafael Souza Yared e Carlos Murilo de Almeida, que morreram em um trágico acidente no início do mês, em Curitiba.

Mas elas não são as únicas que passaram pela situação enfrentando o descaso com o trânsito brasileiro. Mesmo diante de tanta dor, pais, mães, irmãos, amigos de tantas outras vítimas encontram forças para enfrentar outra batalha: lutar para esclarecer os fatos e ver os responsáveis punidos.

Todos, no final, querem justiça para um crime cometido no trânsito. Em média, 130 novos inquéritos, referentes a casos de embriaguez e homicídio, chegam por mês nas Varas de Trânsito. Isso sem contar centenas de termos circunstanciados, ligados a situações de lesões corporais e outros delitos, segundo o Ministério Público do Paraná.

Andreia (nome fictício) é uma das mães que sofrem com a perda de um filho em um acidente. O jovem, de 25 anos, foi atropelado ao atravessar uma das rodovias que cortam Curitiba, em julho do ano passado.

O filho morreu e até hoje Andreia luta para descobrir o que realmente aconteceu. O processo sobre o caso ainda está em andamento. Ela não quer se identificar justamente por causa disso.

“A gente ainda está lutando. Essa luta é muito difícil. É exatamente o que uma das mães dos rapazes que morreram (Cristiane Yared, mãe de Gilmar Rafael de Souza Yared) disse nas entrevistas que ela deu. Não recebemos ajuda de ninguém. Você não sabe onde bater. Além de perder alguém, você ainda tem que lidar com tudo isso”, conta.

Para Andreia, esclarecer todos os fatos e encontrar a verdade, que ainda está obscura mesmo depois de quase um ano, virou questão de honra. Mesmo que ela indique que o filho também teve culpa no acidente. “Eu só quero a verdade”, garante.

Atropelada

O advogado Gilberto Gaeski, 50 anos, também sentiu na pele o que é perder um filho no trânsito. Há cinco anos, Bruna Gaeski, 16 anos, foi atropelada por uma estudante de psicologia, de 23 anos.

Na manhã do dia 1.º de janeiro de 2004, a adolescente caminhava pela calçada da Avenida Nereu Ramos, em Piçarras, litoral de Santa Catarina, voltando da festa de Réveillon com amigos e parentes, quando um Escort com placa de São Bento do Sul vinha em sua direção.

A motorista Ana Luiza Dobeck subiu na calçada, matou a adolescente e bateu num muro de concreto. Segundo Gilberto, Ana Luiza estava visivelmente embriagada e conduzia o veículo a 100 km/h, quando a velocidade máxima permitida era de 40 km/h.

Depois do período de luto, Gilberto, que na juventude foi escrivão de Polícia de Trânsito, não esmoreceu e decidiu acompanhar de perto o caso para evitar que não fosse apenas mais um nas estatísticas.

Foram várias as vezes que ele teve de viajar para Piçarras para recolher provas sobre o crime e encontrar testemunhas, que eram de várias cidades como São Bento do Sul, Joinville e Curitiba.

Em um mês, montou o processo, que hoje conta com mais de 600 páginas. Conforme o advogado, com as provas que ele anexou ao processo, ele conseguiu que o Ministério Público a denunciasse por dolo eventual, um “meio termo” entre dolo e culpa, caso em que o agente não tem por objetivo cometer o crime, mas assume o risco de fazê-lo.

A pena prevista no Código Penal é de 6 a 20 anos de prisão. O dolo não é tipificado no Código de Trânsito Brasileiro, que define as mortes no trânsito como homicídio culposo (artigo 302), cuja pena é de 2 a 4 anos de prisão.

Até quatro anos, a condenação pode ser revertida em pena alternativa, como doação de cestas básicas. Nesse caso, a morte foi causada por negligência, imprudência e imperícia.

Gilberto ainda aguarda o desfecho do caso. Ana Luiza seria julg,ada em 2006, em Piçarras. O advogado espera que Ana Luiza pague pelo que fez. “Mas é possível que o juiz converta o dolo eventual em homicídio culposo dependendo do que o júri entender. Se isso acontecer, a condenação será revertida em pena alternativa. Mas nessa altura, o mais importante que tanto a nossa angústia quanto a da motorista vai acabar.”

Culposo ou doloso?

Joyce Carvalho

Quando alguém morre em um acidente de trânsito, os familiares e amigos querem ver o culpado atrás das grades. Um sentimento normal de querer que o responsável seja punido com rigor.

No entanto, na maioria dos casos com vítimas fatais, os motoristas respondem por homícidio culposo (sem a intenção de matar), caracterizado pela imprudência, negligência e imperícia. O homicídio culposo prevê detenção de 2 a 4 anos.

Nessas situações, o responsável pode pagar pelo erro com penas alternativas, segundo Marcelo Araújo, professor de Direito de Trânsito. “Existe essa expectativa de ver a pessoa presa. Mas, na maioria das vezes, a pena não ultrapassa os 4 anos, podendo ser revertida para pena alternativa. Para uma pessoa de bem, o movimento de todo o processo e seus efeitos vão pesar. Marca para o resto da vida. Mas fica essa sensação de impunidade porque a pessoa não foi presa”, comenta.

A reclusão está prevista quando há homicídio doloso (com intenção de matar) ou com eventual dolo (quando assume o risco). A pena varia entre 6 e 20 anos de prisão e os julgamentos param no Tribunal de Júri, de acordo com Araújo.

“As famílias das vítimas podem ainda ingressar na esfera cível para pedir indenizações, tanto material quanto moral”, afirma. Isso também aconteceu quando acusado e vítima morrem.

Mas para chegar na denúncia de um homicídio doloso ou com eventual dolo é preciso ter um conjunto de fatores e circunstâncias que cercaram o acidente. Araújo cita como exemplo um acidente envolvendo uma caminhonete e um carro na Avenida Visconde de Guarapuava, há alguns anos.

A caminhonete estava fazendo uma “roleta-russa” no trânsito. Furava o sinal vermelho, dava a volta na quadra e fazia a mesma ação novamente. Até que ele pegou o automóvel e matou uma pessoa.

“Se ele (o condutor da caminhonete) tivesse acertado na primeira vez, poderia ser considerado imprudência. Mas ele insistiu e sabia o que estava fazendo”, considera Araújo.

Arquivo
Transitar em alta velocidade é uma das principais infrações nos dados do Detran.

As dez infrações com maior incidência

Os dados do Detran-PR indicam o número de infrações entre janeiro e março de 2009 em todo o Estado. As classificações sobre o tipo de infração foram feitas pelo especialista em trânsito Marcelo Araújo.

1) Transitar com velocidade superior à máxima permitida em até 20%

Infração média

Total de infrações: 83.733

2) Estacionar em desacordo com a regulamentação

Infração leve

Total de infrações: 36.964

3) Deixar condutor/passageiro de usar o cinto de segurança

Infração grave

Total de infrações: 28.492

4) Avançar o sinal vermelho do semáforo ou de parada

Infração gravíssima

Total de infrações: 26.772

5) Deixar de efetuar registro do veículo em um prazo de 30 dias

Infração grave

Total de infrações: 26.043

6) Dirigir o veículos utilizando-se de fones ou telefone celular

Infração média

Total de infrações: 18.335

7) Multa por n&atild,e;o indicação  do condutor infrator Estes casos acontecem principalmente com veículos em nome de pessoas jurídicas Total de infrações: 17.398

8) Transitar com o veículo com excesso de pesoDepende de uma tabela de classificaçãoTotal de infrações: 14.855

9) Transitar com velocidade superior à máxima permita em mais de 20% e até 50%

Infração grave

Total de infrações: 13.913

10) Conduzir o veículo não registrado e devidamente licenciado

Infração grave

Total de infrações: 13.969

A infração que ocupa o 11.º lugar é dirigir veículo sem possuir Carteira Nacional de Habilitação ou permissão para digirir, considerada gravíssima. “Segundo o Detran/PR, 284.480 carteiras de habilitação foram suspensas no Estado desde 1998. Os casos ocorreram tanto pelo condutor atingir 20 pontos quanto por suspensão direta, em infrações gravíssimas.”

“Deste total, 139.528 condutores foram até o Detran/PR regularizar a situação e 32.692 entraram com recursos. Isto significa que 112.260 pessoas estão em situação irregular.” “517.972 condutores foram multados entre janeiro e maio de 2009, sendo que 477.767 já receberam as notificações sobre as infrações que cometeram.”

Falta educação aos motoristas

Joyce Carvalho

Segundo dados do Departamento de Trânsito do Paraná (Detran-PR), somente de janeiro a maio deste ano foram emitidas mais de 500 mil multas em todo o Estado.

A infração mais cometida é transitar com velocidade máxima permitida em até 20% (ver quadro), considerada infração média. No entanto, entre as 10 principais infrações, há uma gravíssima e quatro graves.

Para Celso Alves Mariano, especialista em trânsito, consultor do Portal do Trânsito e diretor de conteúdo da Tecnodata Educacional (empresa que faz material didático para centros de formação de condutores e órgãos), o número de infrações é realmente muito grande e o principal problema no trânsito brasileiro está na falta de educação.

“Além do descumprimento da regra, existem muitos abusos. Não existe vantagem significativa em, uma via onde é permitido andar a 60 km/h, o motorista pegar 70 km/h. As regras são necessárias. Existe um bom motivo para não andar a mais de 60 km/h em determinado local. O abuso é reflexo de um comportamento inadequado e, por trás disso, está a educação”, avalia.

O especialista acredita que a violência no trânsito não é levada a séria no Brasil, onde os acidentes são considerados questão de saúde pública. “Precisa morrer alguém de destaque para todos olharem para a gravidade da situação. Se alguém morre em acidente aéreo, é pavoroso, tem aquela importância. Mas não existe esta mesma repercussão para quem morre no trânsito. Estamos em
um país que a lei de trânsito é menos importante que as outras leis. É preciso tomar uma atitude. Nem que seja motivado pela questão econômica, de tão grande é o custo com acidentes no nosso País”, ressalta Mariano.

Ele lembra que a educação sobre trânsito nos ensinos Infantil, Fundamental, Médio e Superior está previsto no artigo 76 do Código Brasileiro de Trânsito (CBT). Mas isto não é cumprido.

A educadora do curso de reciclagem do Detran-PR, Marli Batagini, concorda que o número de infrações é excessivo. O motivo, de acordo com ela, está na falta de conduta cidadã no momento em que a pessoa está exercendo o papel de motorista.

É aquele condutor que freia antes do radar e corre quando passa o equipamento; aquele que não comete a infração só porque vê um agente de trânsito; aquele que só respeita se não tiver algo coibindo a ação dele. “Se a fiscalização fosse suficiente, o número de infrações ,seria estrondoso. Você vê infração a todo o instante”, assegura.

Ela reafirma que o comportamento condizente com o trânsito só vem com a educação. Os motoristas que atingem os 20 pontos de punição na carteira são de diferentes idades.

Ou seja, estão no grupo os condutores que passaram pelas aulas teóricas, implantadas com o CBT em 1998. Tanto Batagini quanto Mariano revelam que a maioria das pessoas quer aprender apenas o suficiente para passar no teste para conseguir a habilitação e não busca o conhecimento real.

Poucos casos vão a júri popular

Janaina Monteiro

Os casos de acidentes de trânsito que vão a júri são raros, segundo a promotora Danuza Nadal, que atua na 2.ª Vara de Delitos de Trânsito. Numa média geral, de cinco a dez denúncias oferecidas durante o ano são por homicídio doloso no trânsito.

A reportagem de O Estado entrou em contato com o Tribunal de Justiça para saber o número de condenações, mas até o fechamento da edição a Corregedoria não havia terminado o levantamento dos dados.

Em se tratando de homicídio culposo, de acordo com o escrivão Ronaldo Alberto de Souza, da 2.ª Vara de Delitos de Trânsito, estima-se que um em cada oito réus consige absolvição.

Na opinião da promotora, a sensação de impunidade é fruto do senso comum das pessoas, já que não existe pesquisa especializada nesse tema que permita maior divulgação sobre o caso nos meios de comunicação.

“A estrutura policial é deficitária. Na maioria das vezes, os inquéritos vão para a delegacia com dilação de prazo (quando se pede mais tempo) para conclusão e retornam 30 ou 60 dias depois sem que nenhuma providência tenha sido adotada”, conta.

Nas duas varas de trânsito de Curitiba, uma vez concluídas as investigações policiais e oferecida denúncia pelo Ministério Público, em média, um processo de homicídio culposo leva de oito meses a um ano para ser julgado, tempo que é considerado rápido pela promotora.

Porém, quando se trata de homicídio doloso, existe uma demora maior para que o réu seja levado a julgamento. Depois de recebida a denúncia, o processo de homicídio doloso é encaminhado para a Vara Privativa do Tribunal do Júri, onde o réu é citado para apresentar defesa.

As testemunhas de ambos os lados são ouvidas; o réu é interrogado e, na sequencia, são oferecidas as alegações pelas partes. “Se houver indícios de autoria e materialidade, o réu é pronunciado para ser levado a julgamento pelo Tribunal do Júri.”

Há mais de quatro anos à frente da Delegacia de Delitos de Trânsito de Curitiba (Dedetran), o delegado Armando Braga de Moraes Neto, afirma que a investigação de um crime de trânsito é bastante complexa. Por falta de provas materiais e testemunhas, muitos inquéritos acabam “encalhados” na delegacia, gerando a sensação de impunidade.

“Principalmente quando a vítima foi atropelada. Normalmente o motorista foje do local, o que dificulta bastante o nosso trabalho. Nesse caso é comum que o crime prescreva”, reclama.

O delegado acredita que as penas poderiam ser mais rigorosas, mas acha difícil que a alteração minimize o comportamento dos motoristas. Porém, a experiência mostra que a pena severa não inibe o cometimento de crimes.

35 mil morrem no trânsito por ano

Janaina Monteiro

Pesquisa do Instituto de Aplicada (Ipea) estima que, por ano, 35 mil pessoas perdem a vida no trânsito no Brasil. De acordo com um estudo divulgado ano passado pelo Ministério da Saúde, as mortes em acidentes, no País, só não ultrapassam os homicídios.

De acordo com a Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp), em 2008, foram registrados 360 homicídios culposos em Curitiba, capital com mais carros por habitante do País.

Os atropelamentos de pedestres, segundo o estudo do ministério, aparecem em primeiro, lugar no ranking de óbitos, com um total de 27,9% do casos. A maioria das vítimas são crianças e idosos acima de 60 anos. Em segundo lugar, aparecem os ocupantes de automóveis, com 21%, e, em terceiro, os acidentes envolvendo motociclistas, com 19,8%.

As mortes se concentraram em homens adultos jovens (com idade entre 20 e 59 anos), que residem em municípios de pequeno porte populacional. No caso de atropelamentos, o risco de morte é maior entre os idosos. Para ocupantes de veículos, pessoas entre 20 a 59 anos são vítimas em potencial.