Crianças já se preocupam com violência

"Eu vi o meu vizinho matar a sua própria filha. E, uma noite, eu ouvi tiroteio e uma mulher chamou socorro. E a minha mãe e meu pai sempre brigam. Na minha casa ninguém é feliz." Esse texto trata-se de uma redação escrita por uma menina de oito anos. Ela estuda na escola Municipal Ayrton Senna, no Jardim Acrópole, um dos bairros mais violentos de Curitiba.

Olhando as redações de crianças que vivem nos bairros mais atingidos pela violência da cidade, é chocante perceber como a criminalidade está presente na vida delas. São crianças de sete, oito, dez, no máximo 12 anos, que vêem crimes acontecendo nos arredores de casa ou, pior, têm o problema da criminalidade dentro da própria família. Sem muito constrangimento, as crianças contam do tio que anda armado, da mãe que está presa, do irmão que assalta ou do pai que é traficante de drogas.

A reportagem de O Estado visitou três escolas municipais localizadas em bairros de Curitiba conhecidos como sendo os mais perigosos da cidade: Escola Municipal Mansur Guérios, na Vila Conquista; Escola América da Costa Sabóia, na Vila Verde; e Escola Municipal Ayrton Senna, no Jardim Acrópole. O objetivo foi verificar como a violência que assola essas regiões influi na vida escolar das crianças que moram nestes bairros.

"Trabalho aqui há uns 10 anos e vou ser sincera que levei um choque ao ler as redações. É que quando comecei a lecionar aqui, a violência chegava dentro da escola, agora não chega mais. Então a gente tinha a impressão de que a coisa melhorou. Mas não é bem assim. A maioria dos alunos está vivendo situações de violência e eu não imaginava que era tão grave", conta Valdete Moreira de Oliveira, professora há 10 anos no América da Costa Sabóia, na Vila Verde.

Os reflexos dessa realidade violenta são sentidos na vida escolar. A pedadoga da escola, Aparecida Abrão Machna, conta que a procura por tratamento psicológico no posto de saúde é tanta que há mães que esperam quase dois anos para conseguir consultas para os filhos.

Na Escola Municipal Mansur Guérios, a diretora Elizabete Borba Breis conta que o dia-a- dia dos professores é de choque: alunos são presos com freqüência, por estarem envolvidos em assaltos ou tráfico, sem falar no problema das gangues. Na semana passada, dois alunos e um ex-aluno da escola foram presos ao tentarem roubar um tênis de um adolescente. Antes disso, eles já haviam sido pegos ao roubarem uma bicicleta.

Rejane Rauen Gobbo, vice-diretora da escola, conta que é comum ex-alunos virarem bandidos. "Esses dias uma professora estava vindo para a escola e o ônibus foi assaltado por adolescentes. Quando os meninos chegaram perto, ela viu que entre eles estava um ex-aluno dela. A gente fica mal vendo essas coisas. Nos perguntamos o que a sociedade apresentou para eles depois que saíram da escola, porque quando estavam aqui não eram assim. A gente se pergunta o que deixou de fazer, nos sentimos até incompetentes. É frustrante", diz.

Criminalidade: desafio para maioria dos mestres

Tratar sobre a questão da violência é um desafio para a maioria dos professores. A pedagoga da Escola Municipal Ayrton Senna, Emma Corso, conta que os professores até tentam conversar sobre a violência e o problema das drogas com os alunos, mas as dificuldades encontradas são grandes. "Tem criança que sobrevive do comércio de drogas. Só tem comida na mesa porque os pais traficam. Então quando a gente começa a falar que a droga não presta elas não entendem porque a família dela só sobrevive por causa do tráfico", exemplifica.

As conseqüências dessas exposições são severas. Há pouco tempo, a escola teve o caso de dois alunos que foram viver num abrigo. Os pais, traficantes de drogas, perderam o pátrio poder sobre elas. E a avó, que ficou com a responsabilidade sobre as crianças, colocava os alunos, de 8 e 9 anos, para embalar cocaína.

A psicopedagoga e doutora em psicologia cognitiva, Elizabeth Carvalho da Veiga, afirma que as crianças expostas à violência têm dificuldade de aprender porque estão tão aterrorizadas com a realidade em que vivem que mal conseguem prestar atenção nas aulas. "A mente é o resultado da interação com o meio em que vivemos. Como a criança vai aprender se a matriz, o referencial dela, que é a família, vive uma realidade violenta? Não aprende mesmo. A única possibilidade de lidar com o assunto é pensar sobre ele. Quanto mais se fala sobre o assunto, a criança descobre uma melhor forma de como lidar com ele", explica.

De acordo com a psicopedagoga, é preciso fazer a criança repensar, entender a gravidade da realidade social. Ela diz ainda que os professores não podem fugir da questão, que só pode ser resolvida a longo prazo, justamente através da educação. "É preciso fortalecer a autonomia da criança para ela mudar sua própria realidade. Não adianta querer mudar os pais. Se a escola conseguir conscientizar a criança, em 15 anos teremos uma realidade social diferente". (SR)

Projeto Comunidade Escola

A Prefeitura de Curitiba implantou ontem, em nove escolas da capital, o programa Comunidade Escola. De acordo com a secretária municipal de Educação, Eleonora Fruet, entre os objetivos do programa -que deixará as escolas abertas todos os finais de semana para a comunidade – está o de diminuir a violência.

"Este é um programa de mobilização social, envolvendo diversas secretarias e cooperação técnica da Unesco. As escolas ficam abertas todos os finais de semana e oferecem atividades diversas, abertas a toda comunidade. Cada local vai decidir qual cardápio de atrações vai oferecer", explicou a secretária.

Em princípio, o Comunidade Escola vai atingir nove escolas da cidade. Elas foram escolhidas por estarem em áreas de maior vulnerabilidade social ou ainda em locais onde não há muitas opções de lazer, que acabam gerando violência. "É a nossa oportunidade de realizar uma atitude pró-ativa contra a violência", afirmou Eleonora.

Resgate

A Polícia Militar, em conjunto com a Secretaria de Estado da Educação (Seed), desenvolve desde fevereiro do ano passado o programa Patrulha Escolar Comunitária (PEC). São atendidos prioritariamente colégios estaduais e adolescentes e o trabalho é feito para prevenir delitos. (SR)

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