Celina e Beatriz Abagge dizem não temer novo júri

No próximo dia 16 de junho, o Paraná vai relembrar um dos casos que despertou maior comoção no Estado: a morte do menino Evandro Ramos Caetano, de 6 anos, em 1992, na cidade de Guaratuba. Os réus Airton Bardelli dos Santos e Francisco Sérgio Cristofolini, acusados de terem participado do ritual de magia negra no qual Evandro teria sido morto, serão julgados pela primeira vez.

Celina e a filha Beatriz Abagge, que já passaram por júri popular e foram absolvidas da acusação de terem participado do ritual porque os jurados entenderam que não havia provas de que o corpo encontrado era do menino Evandro, irão depor como testemunhas de defesa. Às vésperas de reviverem a história que traumatizou toda a família, elas resolveram falar, em entrevista exclusiva a O Estado.

Porém o julgamento que as inocentou, realizado em 1998, foi cancelado depois de recurso interposto pelo Ministério Público. Celina e Beatriz recorreram a instâncias superiores, em Brasília. Outras três pessoas – o pai-de-santo Osvaldo Marcineiro, 43, o pintor Vicente de Paula Ferreira, 54, e o artesão Davi dos Santos, 42, foram condenados em junho do ano passado por terem cometido o crime e continuam presos.

Enquanto não sai nenhuma medida impedindo novo julgamento em Curitiba, mãe e filha ficam na expectativa de serem julgadas novamente. A acusação a que foram submetidas custou sete anos de prisão. Elas ficaram três anos e nove meses na Penitenciária Feminina de Piraquara e o restante do tempo, até o julgamento em 1998, em prisão domiciliar, em Curitiba.

A iminência de um novo julgamento e o depoimento no próximo dia 16 deixa as duas apreensivas mas, ao mesmo tempo, mostram-se confiantes na justiça divina que, para elas, tarda, mas não falha. ?Quantas vezes formos a júri seremos absolvidas, porque não existem provas. Este crime nunca existiu, não temos como ser condenadas?, afirma Celina.

O Estado – Vocês estão conseguindo reconstruir a vida?

Celina – Estamos lutando. A gente tem que lutar contra um furacão. Ficamos praticamente sem nada, tivemos que recomeçar do zero, isso quanto a bens materiais. Quanto à nossa estrutura familiar, isso a gente nunca precisou refazer porque sempre fomos uma família bem estruturada, sempre demos uma boa estrutura para os filhos, a gente sempre procurou mostrar os reveses da vida. Meus netos, que eram pequenos na época e cresceram escutando tudo isso, a gente já foi criando e contando que existem pessoas más e por causa da maldade das pessoas e da mentira, às vezes põe-se uma família à bancarrota.

O Estado – A que ou a quem vocês atribuem tudo isso que aconteceu?

Celina – Se a gente soubesse, a gente resolvia o caso. Uns querem puxar para o lado da política mas até nem sei se posso porque as pessoas são mutáveis, nos surpreendem. Veja o Neves (tenente-coronel Valdir Copetti Neves). No fim não é um grande de um pilantra? Ele fez a nossa tortura e era um dos homens teoricamente preparados para lutar pela segurança das pessoas. Então é difícil apontar os motivos que levaram a tudo isso…

Beatriz – A gente também não pode acusar ninguém…

Celina – Quem nos acusou foi este cidadão de Guaratuba, Diógenes dos Santos Caetano Filho. Ele não gostava da nossa família gratuitamente, na verdade ele não gosta de Guaratuba, não gosta do povo de Guaratuba. Nunca teve uma vida social, não freqüentava lugar nenhum. Tinham que dar satisfação do desaparecimento daquela criança e toda esta história diabólica contra minha família foi inventada.

O Estado – Muita gente questiona o fato de vocês não terem falado tudo isso na época em que os fatos aconteceram…

Celina – Por mais que a gente gritasse a nossa inocência, nosso grito não podia aparecer. Acho que a imprensa da época não acreditava na gente, acho que eles pegaram aquele prato pronto e, na época, acho que não havia muito preparo para que estes jornalistas assimilassem e vissem a história dos dois lados.

Beatriz – Muitos até tentaram, mas não adiantava, eles não colocavam as matérias. Havia forças estranhas que barravam estas pessoas que queriam contar a outra parte.

Celina – Hoje em dia já é diferente. Podem pegar um sujeito matando na frente de todo mundo, com mil testemunhas, e eles dizem: ?o suposto assassino?. Mas no nosso caso não. Éramos as bandidas, as assassinas, as bruxas, o ritual satânico. O próprio secretário de Segurança da época, Moacir Faveti, disse: peguem os filhos da Beatriz Abagge que moram na rua tal, número tal e levem em praça pública para fazerem com eles o que as duas fizeram com o filho dos outros. Isso dito pelo secretário de Segurança Pública, que era para ser uma pessoa para zelar pela segurança da população. Se ele chegou a tomar esta atitude, o que dizer dos demais?

O Estado – Vocês acusam o tenente-coronel Valdir Copetti Neves de ter comandado as torturas que vocês sofreram para confessar o crime. Como aconteceu esta tortura?

Beatriz – Foi no dia que fomos presas. Eu não me lembro direito de tudo que aconteceu, me lembro em flashes. Até hoje tenho marcas no corpo dos choques elétricos, das torturas. Fui violentada por diversos homens. Desmaiei tantas vezes que não consigo me lembrar quantos foram. E enquanto tudo acontecia, escutava os policiais chamando por Neves. E eu só via quando ele chegava perto para me torturar. Só escutava a voz e via uma bota marrom, com meia marrom e uma calça verde. No dia que fomos levadas para delegacia em Matinhos, estava sentada numa sala, de cabeça baixa, e vi quando a porta se abriu e entrou um homem com bota marrom, meia marrom e calça verde. Quando ele começou a falar comigo, não tive dúvidas que era ele (Neves). Ele me disse que deveria falar tudo o que foi combinado naquela casa (da tortura) no depoimento, porque, se não, matariam toda nossa família.

Celina –  Eles nos levaram para esta casa e nos colocaram em quartos separados. Me jogaram numa cama com um cobertor por cima e me bateram muito. Toda vez que falava alguma coisa, me batiam. Eu escutava os gritos da Beatriz e ficava desesperada. Ela dizia para eu falar tudo o que eles quisessem porque, se não, iriam matá-las. Foi quando veio o Neves com um gravador. Ele me torturava e ditava o que eu deveria dizer. Cada frase. Primeiro mandou eu dizer que matei o menininho. Depois dizer que matei o menininho com uma serra, e assim foi. Sempre parando a gravação, em cada frase, torturando mais para me obrigar a dizer o que ele queria.

O Estado – Vocês ficaram quase quatro anos presas, em Piraquara. Como foi este período?

Celina – Foi terrível. Nos 15 primeiros dias, nos deixaram numa solitária, em celas separadas. Era julho, fazia um frio terrível, e não tínhamos nem roupa. Quando saí de lá, passei dias sem tirar a mão da frente dos olhos, porque feria. E teve toda a hostilidade das outras detentas no começo, a má vontade das carcereiras. Foi um inferno. Perdi meu marido enquanto estava lá. Naquela altura, depois de tanto sofrimento, eu já não temia mais nada, nem a morte, porque até a morte era melhor do que aquele inferno em que estávamos vivendo.

Beatriz – Naquela solitária, eu quase enlouqueci. Não havia luz alguma, era um lugar úmido, sujo. Depois de todas as torturas, eu estava perdendo minha sanidade mental. E sabe o que salvou a minha vida? Uma aranha. Sempre tive pavor de aranha. Um dia, de cócoras na solitária, vi uma aranha descendo pela teia em minha direção. Naquela hora eu acordei e comecei a trabalhar minha mente de novo. Assoprava para não deixar a aranha chegar em mim. Foi assim, pensando em outra coisa, trabalhando minha mente, que não enlouqueci.

O Estado – Depois deste tempo todo, vocês ainda percebem na vida de vocês os reflexos de tudo o que aconteceu?

Celina – Eu estou melhorando aos poucos e acho que superar tudo, a gente nunca vai. Ainda hoje, quando vejo uma farda, minha primeira reação é de medo. Quando assisto na TV alguma pessoa confessando um crime ou sendo apontada como criminosa, reparo nos ferimentos, no rosto assustado. Eu não consigo aceitar isso, estas torturas. Prendam, mas não batam, não cutuquem, respeitem os direitos. A gente que já passou por isso sabe que existe muita gente que não tem qualquer apoio, não tem nenhum direito respeitado. Isso precisa acabar.

Beatriz – Eu nunca vou esquecer o que passei. Tenho marcas até hoje pelo corpo, tomo remédios, só de falar no assunto me dá vontade de ir ao banheiro toda hora. Nos meus filhos gêmeos, que tinham dois anos na época, estou percebendo agora, que estão com 15 anos e na adolescência, o reflexo de todo este trauma. É agora que começam a surgir as revoltas e os traumas ficam evidentes.

O EstadoAgora vocês participarão, como testemunhas de defesa, do julgamento do próximo dia 16 e também correm o risco de irem a julgamento novamente. Como vêem esta situação?

Celina – Toda vez que falamos nesta história, é como se revivêssemos toda aquela tragédia. O que importa é ganharmos a nossa inocência perante o mundo porque sabemos que existe muita gente ainda que acredita que somos culpadas.

Beatriz – É duro reviver tudo isso mais uma vez, ver aquele torturador de novo. Mas não temos mais porque ter medo. Nosso sonho é montar uma ONG para impedir os abusos, estas torturas. A gente que passou por isso sabe que muita gente também continua sofrendo e isso precisa acabar. Já temos até o nome da ONG: Fundação Aldo Abagge de Direitos Humanos. Agora é só colocar em prática.

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