Véspera de Natal com companhia especial

Chovia muito. Fato raro em pleno 24 de dezembro num país tropical. Mas como era verão, tudo pode acontecer. Mas, que chovia… chovia mesmo!! Muitas ruas já estavam começando a ficar alagadas, com certeza pessoas iam ficar ilhadas na véspera de Natal.

Mas eu já estava acostumado a ficar pelas ruas, todos os dias… Todas as noites, dia normal, dia comum, noite normal, noite comum, dia santo, santo dia, carnaval, morar na rua era normal, com ou sem chuva. Pô ! Mas, era Natal! E daí? Pra mim um dia como outro qualquer, a única diferença eram aquelas lojas todas enfeitadas, a diferença eram aquelas crianças passando e passeando cheias de pacotes, forradas de presentes, afora isso… Um dia normal, uma noite normal, neste verão de país tropical.

Os degraus daquela igreja parecem um bom lugar pra se esconder da chuva, que, aliás, aumentou bastante. Acho que hoje o mundo acaba em água. Vou sentar e comer alguma coisa. Não me lembro bem quem foi, mas acho que ganhei um panetone, não lembro se foi a dona de uma loja, ou foi do padre, sei lá!!! Mas cadê meu saco de lixo? Guardei lá meu panetone. Afinal é uma ceia de Natal, a minha ceia de Natal!

Xi!! Olha lá! Lá vem mais um indigente (não suporto quando me chamam de indigente), aposto que sentiu o cheiro do meu panetone de longe e já vem ?filar? um pedaço.

– Oi ! posso sentar aqui?

– Vai lá véio.. senta aí!. To sózinho mesmo. Que chuva hein?! Vai um pedaço de panetone aí?

– Essa é sua ceia de Natal? perguntou o estranho.

E bota estranho nisso. Cara esquisito. Uma roupa manera, um cabelo até que bem cuidado pra quem mora na rua. Mas vai saber! Vai ver que é um novo indigente, ou alguém querendo esquecer alguma desilusão da vida. Vejo isso todos os dias. Antes de sentar, o estranho abriu um saco de tecido, tirou um pedaço de madeira e colocou no chão. Provavelmente pra não molhar o traseiro.

Começamos a comer o panetone. Um mais mudo que o outro.

– Perái tenho uma surpresa!! Alertou o estranho.

E começou a tirar um mundo de coisas daquele saquinho de pano. Uma champahne, outro panetone, um bolo, um par de sapatos, uma camisa seca, um marmitex com carne e batatas fritas. Meu Deus, o cara é mágico?!

E não parava de sair coisa daquele saquinho: um par de meias, um boné do meu time, e ainda de quebra uma foto da minha família. Uma foto da minha mulher e dos meus filhos, antes do acidente que tirou a vida de todos. Lembrei que tentei fazer de tudo para girar o volante, mas foi tudo muito rápido. Não consegui. A pancada foi violenta. Não sobrou nada do carro. Morreram todos. Só eu sobrevivi, mas no fundo acho que morri aquele dia também, e de lá pra cá, morro um pouco todos os dias, até o dia que eu possa encontrar todos eles em algum lugar.

O estranho olhou pra mim e com uma voz que me era familiar falou mansamente, no exato momento que parou de chover:

– São presentes pra você e não fique assim filho, não foi culpa sua, Feliz Natal!!

O estranho foi descendo a escadaria da igreja e sumiu na noite. E eu não entendi nada. Quem era o cara? Quando olhei pro lado, vi o pedaço de madeira que o estranho usara para sentar : Ele esqueceu no mesmo lugar.

Peguei a madeira de mais ou menos 30 centímetros, por uns 10 de largura e sai correndo atrás dele. Já tinha sumido.

Pensei em jogar a madeirinha fora, mas olhei e vi o que estava escrito, resolvi guardar no meu saco de lixo. As letras I.N.R.I gravadas na madeira queriam me dizer alguma coisa, não sei o que, mas queriam me dizer alguma coisa.

Jonathan Mello é jornalista

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