Uma nota contra a especialização em matéria criminal

A tendência parece irreversível. As varas criminais especializadas proliferam, dentro da percepção intuitiva, mas não necessariamente correta, de que nada há a perder se determinadas matérias, em razão de suas especificidades, peculiaridades ou complexidades, forem julgadas de maneira exclusiva por juízos (e juízes) especializados.

O juiz que não precisa saber de tudo, pode, quiçá, saber tudo sobre um tema restrito, dominando suas extremidades, permitindo atualização adequada, conhecendo e reconhecendo, nas situações da vida, os padrões de comportamento que fatalmente aparecerão, dentro da realidade restrita da especialização em que irá exercer sua jurisdição.

Parece bom e desejável que assim seja, e não se pode deixar de reconhecer que, até certo ponto, a especialização contribui positivamente para uma prestação jurisdicional mais eficiente (com todas as reservas que a noção de eficiência suscita, quando se fala de direito e processo penal).

O que se pode dizer contra essa intuição generalizada? Os paralelos são inevitáveis: acionado por uma reclamação trabalhista, não procurarei, por certo, um tributarista; acossado por dores na coluna, temerárias serão as prescrições de um oftalmologista. O que opor, portanto, a que esse princípio seja estendido àqueles responsáveis por dizer o direito?

A rotina forense tem nos trazido, nesse tocante, uma resposta inesperada, um efeito colateral indesejado: a transformação do juiz especializado no Guardião do Bem Jurídico Tutelado pela matéria de sua especialização. Assim, o juiz que deveria ser o protetor da Constituição, do devido processo legal e zelador de sua própria isenção, transmuda-se em protetor do bem jurídico objeto de sua especialidade.

A imparcialidade, por mecanismos psicológicos e sociais sutis, dentre os quais a demanda da própria sociedade, vai cedendo lugar a uma posição de combate, em que a proteção ao bem jurídico específico se torna mais importante do que a proteção dos direitos e prerrogativas do jurisdicionado. O foco em determinado bem jurídico tutelado, gerado pela especialização, parece criar um comprometimento do magistrado com a preservação da matéria que a especialização visa tutelar, em detrimento da observação do devido processo legal e da imprescindível isenção.

Os titulares das varas especializadas em evasão de divisas, lavagem de dinheiro ou lei Maria da Penha, acabam se identificando também porque assim são identificados pela sociedade com os respectivos bens jurídicos. Convidados para palestras, serão perguntados sobre sua visão sobre o “combate’ à evasão de divisas, discorrerão sobre os percalços na evitação da lavagem de dinheiro, ou ainda em como anda a evolução da proteção da mulher após a edição da lei. Todas preocupações legítimas, mas a questão é: cabe ao juiz a posição de falar em nome da proteção dessas questões?

Antes de ser o mestre de sua especialização, ou o guardião de bem jurídico específico, o juiz, no processo penal, é o guardião de direitos previstos na Constituição. Identificar-se com a guarda de bens jurídicos caros à sociedade é, sem dúvida, mais interessante do que ser um tedioso observador do devido processo legal. Mas trata-se de uma degradação de sua função, em um processo penal de partes, que só se oxigena na presença de um juiz imparcial.

A especialização dentro da matéria criminal vem causando essa identificação excessiva, seja pela demanda externa (como a sociedade vê e o que espera desse juiz especializado), seja do ponto de vista subjetivo: sua auto-imagem vai se construindo não como, exemplificativamente, o Juiz da Vara de Violência Doméstica, mas sim como o de Juiz de Proteção contra a Violência Doméstica. A desejável posição equidistante das partes vai sendo perdida. Os denominadores comuns com a Polícia Judiciária e o Ministério Público ganham espaço.

O juiz guardião do bem jurídico tutelado é uma distorção, demonstrando que a especialização excessiva em matéria criminal traz, sim, um efeito colateral, que por atingir a prestação jurisdicional no que ela tem de mais vital a imparcialidade do magistrado merece reflexão da sociedade jurídica.

Gustavo Filgueiras é advogado criminal no Rio de Janeiro/RJ.

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