Um (quase) desconhecido chamado Gomez de la Serna

Não deixa de ser curioso – e até mesmo melancólico – o destino de certos artistas, sobretudo escritores, que, gozando em vida de merecida notoriedade, incensados pela Fama ou ovacionados pelas trombetas glorificantes, acabam por cair, “postmortem”, no esquecimento, no olvido triste, como se tivessem ascendido a uma espécie de limbo ou purgatório, para purgar culpas que certamente não tiveram.

É o caso, apenas para exemplificar, do espanhol Ramón Gomez de la Serna (Madri, 1891 – Buenos Aires, 1963). Romancista, novelista, contista, ensaísta e biógrafo, além de humorista, com mais de cinqüenta livros publicados, é hoje um quase desconhecido, sobretudo fora do condomínio lingüístico da hispanofonia. (Na área lusófona, o caso de Fernando Pessoa situa-se nos antípodas de Serna: só depois de morto o poeta dos heterônimos, gênio da poesia, acabaria por ser considerado, por gregos e troianos, o maior poeta europeu do século vinte, só comparável a Shakespeare.)

Lamentavelmente, o romancista e ensaísta respeitabilíssimo que foi Gomez de la Serna é hoje lembrado sobretudo pela sua prosa humorística, pelos seus ditos inteligentes, saborosos, hilariantes, pelos seus aforismos desabusados.

É esse, aliás, o território que vou me permitir viajar, para oferecer ao prezado leitor que me dá o privilégio e a honra da sua leitura o mesmo prazer que eu próprio senti ao entrar em contato pela primeira vez com esses ditos e aforismos. Afinal, numa época como a nossa, em que pontificam, superabundantemente, as notícias infaustas, os fatos negativos, as ocorrências deletérias, quando não sinistras, um pouco de riso – voltairiano, cervantino ou rabelaisiano – até que vai bem, obrigado.

Aí vão, pois, numa seqüência ininterrupta, uma série de frases de efeito, “bons mots” e “boutades”, que constituem hoje uma espécie de resíduo verbal da antiga glória serniana. Colhidas em diversas épocas e em várias fontes, aí vão as “pérolas” do madrilenho falecido há precisamente quarenta anos. Faço questão de numerá-las com um propósito essencialmente pragmático: caracterizar a autonomia ideológica de cada uma delas.

1) As andorinhas enchem com assinaturas o pergaminho do céu, em homenagem à primavera. 2) Nos banquetes, o mais difícil de digerir é – às vezes – a perna da mesa que nos coube. 3) A bolsa é o pronto-socorro da beleza feminina. 4) A gasolina é o incenso da civilização. 5) A ilusão é o suspiro da fantasia. 6) A hipocondria é uma enfermidade para a qual ainda não existe especialista. 7) O livro é um pássaro com mais de cem asas para voar. 8) Meteorologia? Não – mentirologia. 9) Nostalgia ou saudade: nevralgia das lembranças. 10) O “Pensador” de Rodin é um enxadrista a quem roubaram a mesa com o tabuleiro de xadrez. 11) Suicídio: o mais perigoso dos esportes, da mesma forma que a vida é a única doença cem por cento letal. 12) Taquicardia: é quando o coração começa a escrever taquigraficamente. 13) Pensamento consolador: os vermes que nos irão comer também hão de morrer. 14) No vinagre reside todo o mau-humor do vinho. 15) Os zeros são os ovos dos quais saíram todos os algarismos. 16) O buldogue é o doutor “honoris causa” dos cachorros. 17) As notas de papel-moeda são o mata-borrão do suor da humanidade. 18) Ópera: local onde se afinam todos os pigarros e engrossam todos os catarros. 19) Sempre há de faltar na coleção do filatelista um selo raríssimo: o do reino dos céus. 20) Apendicite: pseudônimo do aborto que se faz nas clínicas de luxo. 21) Aristocrata: um democratra extremamente bem sucedido nos seus empreendimentos. 22) Por que será que quase todos os autodidatas andam a pé? 23) Bicarbonato de sódio: o condimento por excelência das indigestões pantagruélicas. E fiquemos por aqui. Quem ousará negar a extraordinária verve do conterrâneo de Cervantes e do “Lazarillo de Tormes”?

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