Sob os olhos do feitor: Da mangueira do malungo

Recentemente decisões judiciais alteraram a experiência curitibana em torno da política de cotas da UFPR. Sem embargo tenham sido proferidas por distinto magistrado federal, que mesmo novo, mostrou-se corajoso diante dos olhos vigilantes e imperdoáveis do tribunal (característica nobre e por vezes rara), carregam consigo um peso talvez inimaginável, vez que estariam prontas a alterar alguns séculos da história do código negreiro do Brasil.

Certamente o modo superestrutural de tentar modificar a realidade universitária nacional pode e deve sofrer uma série de críticas, sobretudo pelo despreparo científico-administrativo da estrutura estatal, pelo estabelecimento de percentuais desabusados ou mesmo pela ausência completa de reformulação das bases educacionais, tal o ensino médio e o fundamental públicos.

Entretanto, não há como deslembrar tamanha opressão sofrida pelos negros, bem como as profundas raízes que constituíram as bases do Brasil contemporâneo, razão pela qual algumas esquecidas reflexões devem novamente vir à tona.

Assim que se percebeu que o nosso gentio valia a quarta parte da força do negro, no dizer de Sérgio Buarque de Holanda, logo começou a corrida desvairada em direção ao noroeste africano, e os colonos portugueses, então autorizados pelo desastroso alvará de 1559, passaram a ?resgatar? mão-de-obra para as plantations nacionais.

Desse modo, constituía-se, entorno da empresa mercantil e colonial, a inconseqüente experiência brasileira rumo ao desenvolvimento de seu capitalismo tardio. Mesmo que os inúmeros decretos da segunda metade do século XIX tenham conduzido para o fim da escravidão, e alguns destacados brasileiros tenham assim lutado, como Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, Teixeira de Freitas, etc., a verdade é que a realidade nacional não foi tão facilmente alterada.

De um lado, porque a falência do sistema escravocrata foi fruto antes da existência de mão-de-obra assalariada de imigrantes fugitivos das crises econômicas que assolavam a Europa continental, bem como de novos comerciantes e faiscadores que se enriqueceram com a indústria da mineração, do que simplesmente em razão da existência de um pensamento humanitário que conduzira os homens neste final de século. De outro, porque esta triste realidade do escravismo colonial, nas palavras de Jacob Gorender, manteve-se forte mesmo nos primeiros anos da velha República, e, indiretamente, deixou suas marcas até os dias de hoje.

Essa terrível exploração tricentenária conformou a estrutura social do Brasil, que apenas pode vivenciar a alternância das classes dominantes: os donatários foreiros do extrativismo do pau-brasil foram substituídos pelos senhores de engenho da indústria açucareira, que por sua vez cederam lugar os mineradores do ciclo aurífero, às oligarquias dos cafezais, aos coronéis e aos empresários da industrialização.

Entretanto, os expropriados dos meios de produção e os afastados dos cercamentos se mantiveram os mesmos formalmente até o sec. XVIII, quando foram sendo paulatinamente substituídos. A situação subalterna dos negros estava formada, e, enquanto bastariam apenas alguns anos para os mussumbas (expressão do dialeto quioco, para referir-se aos brancos europeus) ?aperfeiçoarem? sua educação com a constituição do bacharelismo pátrio, os malungus (vocábulo quimbundo, utilizado pelos negros companheiros de senzala, para se referirem uns aos outros) ainda estão em busca de ?criarem? espaço para sua educação.

Não serão apenas algumas décadas do fim da escravidão capazes de acabar com a imensa distância da mangueira (expressão quiconga, para referir-se ao curral do gado, a que muitos negros foram submetidos) e do muzumgu (vocábulo suaíle, para referir-se ao palácio dos europeus). Nada se constrói de uma hora para a outra. É necessário reconhecer o modo como a escravidão engessou e impediu a ascensão dos negros no Brasil. É preciso reconhecer os ?erros civilizatórios?, e tentar mudar a realidade, ainda que para isso seja preciso utilizar políticas públicas indesejadas ao sabor de nossos ?requintados? e brancos paladares.

Por isso, jamais podemos esquecer dos tristes ancoradouros de São Filipe de Benguela, donde muitos negros desdentados foram lançados ao Atlântico em direção ao Brasil. Emprestando a feliz expressão de Guimarães Rosa, também não fujamos à deplorável imagem dos negros desdeixados nas margens brasileiras, sem terra, sem família, sem indumentária, sem nada.

Não nos esqueçamos do aniquilamento da origem, da imposição da fria língua de Camões que fez calar os ritmados e naturais cantos culturais do banto, nagô (ioruba), muxicongos, rebolos, caçanjes etc. Também não nos esqueçamos de nosso ?totalitarismo? racial, que procurou destruir as relações privadas, destribalizando, isolando negro por negro, e os tornando um estranho para si mesmo e para o outro.

Não nos esqueçamos dos negros manzubentos que morriam de nostalgia nas quentes madrugadas dos trópicos, ou mesmo dos que agonizaram da dor das chibatas na ?sensatez? do cândido pelourinho. Não esqueçamos na memória os negros ancestrais que morreram nos canais da morte dos ?rios de Guiné?. Não nos esqueçamos da memória dos netos de escravos que, moribundos, bruxuleavam nos engenhos dos Armadores, de São Jorge dos Erasmos, do Senhor Governador e de ?Nossa Senhora da Ajuda?. Não nos esqueçamos que as únicas casas dos escravos eram a casa da moenda, a da fornalha e a casa de purgar, enquanto os brancos se regozijavam nas banheiras esmaltadas de suas tribeiras. Não nos esqueçamos dos atrozes suplícios: do tronco, do vira-mundo, do cepo, do libambo, da peia, da gonilha, dos pontapés no ventre das gestantes, dos olhos vazados, dos dentes quebrados a martelo, das mucamas estupradas, dos emparedamentos em vida, das mutilações e aleijões.

Não esqueçamos que o nanquim das mãos dos brancos era o massapé das unhas dos escravos; que a Floresta de Enganos de Gil Vicente era os braços dos escravos; que a estirpe dos brancos era a ?filiação desconhecida? dos escravos; que o quinhão dos brancos era o porão dos escravos; que as oitavas de ouro do branco eram o descanso do escravo; e que a riqueza dos fados era a capoeira dos escravos.

E nos esquecermos de tudo isso, que os negros de nosso país ainda vivem e sentem ?sob os olhos do feitor?, e que não poderemos deixar de perceber a atualidade da robustez e penetrante angústia dos versos de Castro Alves: ?Senhor Deus dos desgraçados, dizei-me vós, senhor Deus: se é loucura ou se é verdade tanto horror perante os céus??!. Não nos esqueçamos…

Guilherme Roman Borges é advogado; mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP; mestrando em Sociologia do Direito na UFPR; e professor de Teoria Geral do Direito e Direito Econômico na Unicenp.

Voltar ao topo