Sistema Financeiro da Habitação ? Contrato de gaveta II

Neste caderno, na edição de domingo próximo passado, tivemos a oportunidade de abordar o tema “Contratos de gaveta”. Entretanto, por verificarmos que não foi suficientemente esclarecedor o artigo passado, deixando de abordar a posição da jurisprudência nesses casos, tomamos a liberdade de novamente analisarmos esta matéria, em especial porque muitos mutuários têm sentido na pele a renitência dos agentes financeiros em aceitar esse tipo de contrato.

Para que fique bem clara a posição da nossa jurisprudência, vejam-se algumas decisões do egrégio Superior Tribunal de Justiça, verbis:

“SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO. CONTRATO DE MÚTUO. CESSÃO E TRANSFERÊNCIA DE DIREITOS PELO MUTUÁRIO. SUB-ROGAÇÃO NAS OBRIGAÇÕES CONTRATUAIS. PERMANÊNCIA DA GARANTIA HIPOTECÁRIA. CONHECIMENTO TARDIO DO AGENTE FINANCEIRO. IRRELEVÂNCIA, PELA SUA INTERVENÇÃO NO PROCESSO. VALIDADE DO NEGÓCIO. REEXAME DE PROVAS E ANÁLISE DE CLÁUSULAS CONTRATUAIS. Tendo o mutuário transferido seus direitos para terceiros, sub-rogando-se o adquirente nas obrigações e direitos decorrentes do contrato, e permanecendo a mesma garantia, a transação não importou em violação à lei nem divergiu da orientação da jurisprudência. A comunicação que teria de ser feita ao credor hipotecário restou superada pela intervenção do agente financeiro no processo. Válido é o negócio entre as partes, nos limites da sua eficácia: a obrigação de transferir os direitos sobre o imóvel e a ciência do credor. De qualquer modo, o conhecimento do recurso e a apreciação de seus fundamentos importam, ainda, não só no reexame das provas, como na análise de cláusulas contratais (Súmulas 5 e 7, STJ)”. (STJ, REsp 92.0031135, Ministro Helio Mosimann, DJ 18.12.95, pg. 44542).

“SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO (SFH)- CONTRATO DE MÚTUO -TRANSFERÊNCIA DO IMÓVEL PARA TERCEIRO COM SUB-ROGAÇÃO DE DIREITOS E OBRIGAÇÕES – CÓDIGO CIVIL, ART, 930, ARTS. 267, VI E 329 – LEIS 4.595/64 E 8.004/90 – DECRETOS-LEIS 2.291/86, 85.776/81, 2.406/88, 83.323/79 E 97.222/88. Inequívoco o conhecimento, pela instituição financeira (credora hipotecária), da transferência do imóvel, para terceiro, este sub-roga-se nas obrigações e direitos estabelecidos no contrato firmado pelo originário devedor, continuando a mesma garantia hipotecária. O conhecimento, sem oposição à transferência, equivale à implícita concordância”. (STJ, Resp 93.0039146, Ministro Milton Luiz Pereira, DJ 06.03.95, pg. 04318).

“SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO. CESSÃO DO IMÓVEL FINANCIADO. AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO. I – O direito positivo vigente sempre admitiu a cessão de contratos relativos a imóveis mediante simples trespasse ou transferência, sendo a ele contrária a sua oneração com um novo financiamento. De outra parte, a hipoteca vincula o bem gravado, acompanhando-o sempre onde quer que se encontre. Adere à coisa, sem no entanto, trazer limitações quanto ao direito de dispor, não impedindo o direito de seqüela, transações ou alienações. II – Decreto-Lei n.º 2.291/86, com a redação do Decreto-Lei 2.046/88, art. 9.º. Lei 8.004/90, art. 1.º, parágrafo único. Ofensa não caracterizada. Dissenso pretoriano configurado. III – recurso especial conhecido, mas desprovido”. (STJ, Resp 33.836-4/RS, Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, DJ 04.08.97, pg. 34707)”

Também do Tribunal Regional da 4.ª Região, verbis: “A autora é parte legítima, pois não está debatendo o reajuste das prestações mensais, mas apenas que seja procedido o levantamento do ônus hipotecário que pesa sobre o imóvel por si adquirido, através de escritura pública de compra e venda válida, celebrada com o mutuário original. De outra parte, mesmo que fosse o caso de não se considerar quitado o financiamento, a parte autora teria legitimidade para discutir os termos do contrato, tendo em vista que a cessão de direitos e obrigações decorrentes do financiamento ocorreu em 1994, e o art. 20 da Lei 10.150/00 permite ao cessionário regularizar transferências celebradas até 25.10.96, independentemente de terem sido procedidas sem a participação do agente financeiro”. (Rel. Des. Fed. Sérgio Renato Tejada Garcia, AC. N.º 2001.04.01.085434-8, DJU de 11.12.2002, p. 971).

“Aquele que adquire o imóvel hipotecado é interessado, para os efeitos do art. 930, “caput”, do Código Civil, no pagamento das prestações de resgate do mútuo, porque a respectiva falta implica a execução do gravame. Ao credor é defeso recusar o recebimento, porque o pagamento não tem o efeito de integrar o comprador do imóvel na relação de financiamento, estando livre para executar antecipadamente o saldo devedor, se a alienação do imóvel dado em garantia caracterizar infração de cláusula contratual. (TRF – 4.ª Região, AC. 92.04.04554-0, Relator para Acórdão Juiz Ari Pargendler, DJU 16.11.94).

Destarte, constitui-se cláusula leonina a que prevê o vencimento antecipado das prestações em caso de venda do imóvel garantidor de financiamento, porquanto fere mortalmente dispositivos constitucionais e do Código Civil Brasileiro que protegem o direito de propriedade (art. 5.º, XXII, da Constituição Federal e art. 524 do Código Civil). É plenamente eficaz a transferência dos direitos do contrato de mútuo hipotecário firmado com agente financeiro, sub-rogando-se o comprador nos direitos e deveres do mutuário originário.

Arrematando a questão, faço minhas as considerações expendidas pelo ilustre Min. Ari Pargendler, no voto vista proferido no REsp 33.836/RS onde assevera: “Aqui a questão é de consignação em pagamento, a cujo desate importa apenas reconhecer aplicável o art. 930 do Código Civil, in verbis: ‘Qualquer interessado na extinção da dívida pode pagá-la, usando, se o credor se opuser, dos meios conducentes à exoneração do devedor. Parágrafo único – Igual direito cabe ao terceiro não interessado, se o fizer em nome e por conta do devedor’. Os recorrentes são interessados no pagamento da prestação. Quanto assim não fosse, poderiam pagar em nome e por conta do devedor”.

Afora isso, com a publicação da Lei n.º 10.150, de 21 de dezembro de 2000, alterando os dispositivos da Lei n.º 8.004/90, que previam os critérios para formalização da transferência dos financiamentos firmados no âmbito do SFH, os chamados contratos de gaveta passaram a ser reconhecidos, permitindo a regularização junto ao agente financeiro, o que autoriza o novo devedor (cessionário) a pleitear os direitos à revisão do contrato, desde que observada a sua capacidade contributiva e os demais requisitos exigidos pelo SFH.

A alteração impede, ainda, que o mutuário seja penalizado com o vencimento antecipado da dívida, conforme prevêem os contratos de adesão firmados no âmbito do SFH. (Rel. Des. Fed. Edgard A. Lippmann Júnior, Ap. Civ. n.º 2002.04.01.044836-3, p. 786).

A nossa insistência quanto ao direito líquido e certo do mutuário em ver reconhecido os chamados “contratos de gaveta”, cinge-se no fato de que os agentes financeiros, em sua grande maioria, não têm dado este tratamento jurídico, preferindo reconhecer o descumprimento do contrato, que normalmente contém esta vedação, aplicando o vencimento antecipado de toda a dívida, bem como compelindo o mutuário ao pagamento da diferença entre o valor da alienação do imóvel (arrematação ou adjudicação), quando isso ocorrer.

Por isso, alertamos aos mutuários quanto ao direito de terem reconhecido os seus “contratos de gaveta” firmados até 25.10.96, independentemente da existência de cláusula contratual vedando dita conduta, ainda que o agente financeiro desconheça esta transação, evitando as graves conseqüências que podem decorrer na hipótese de aceitação desta absurda imposição de muitos agentes financeiros.

Vicente Paula Santos

é advogado de empresas em Curitiba/PR, membro do Instituto dos Advogados do Paraná.Sugestões e-mail:
vps@juridicoempresarial.com.br

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