Separação e divórcio extrajudiciais: pontos polêmicos da Lei Nº 11.441/2007 – II

Ultrapassada a questão da constitucionalidade da lei, o maior problema quanto ao divórcio ser feito em Cartório passa a dizer respeito à comprovação da separação de fato. A lei não esclarece como isso se dará. Tem o notário atribuição para avaliar tal prova? Pode ele, v.g., ouvir testemunhas? Valorar documentos?

Antes mesmo da Lei n.º 11.441/07, já se vinha vulgarizando uma praxe de se admitir a substituição de depoimentos testemunhais por declarações feitas em Cartório extra-judicial (ou pior: muitas vezes feitas por instrumentos particulares). Em que pese não haver proibição expressa a este tipo de prova no processo de divórcio, parece-nos não ser ela suficiente para provar a separação de fato do casal, tendo em vista a fragilidade da prova testemunhal (note-se não se poder chamar tal prova de documental) produzida fora da presença do Magistrado. Não há, em nosso sentir, uma efetiva comprovação da separação de fato se apenas se junta aos autos uma declaração feita por pessoas, na maioria das vezes, não corretamente identificadas, declarando terem conhecimento de que o casal está separado de fato há tanto tempo. O mínimo que se pode exigir, tendo em vista a fragilidade da prova testemunhal, é que as testemunhas compareçam em Juízo, sendo advertidas da necessidade de falarem a verdade sob as penas da lei.

Note-se que a separação de fato por mais de dois anos é requisito constitucional para a obtenção do divórcio, requisito este que é de ordem pública e, portanto, indispensável. A nova lei, ao deixar de regular o assunto, e da forma lacônica como regulamentou o procedimento de elaboração da escritura pública de divórcio consensual, praticamente dispensou o único requisito constitucional para a obtenção do divórcio direto, que é a prova da separação de fato por mais de dois anos. E já há quem diga que ?não há que se falar em oitivas de testemunhas. Basta a afirmação dos divorciando (sic) de que estão separados há mais de dois anos?(32). Chega-se até a dizer que não haverá necessidade de testemunhas no divórcio direto judicial(33). Com a devida vênia, tal entendimento contraria expressamente a clara exigência da Constituição Federal de comprovação da separação de fato.

Também neste aspecto, portanto, a nova lei parece-nos de constitucionalidade duvidosa. Com efeito, se é exigência da Constituição Federal ?comprovada separação de fato por mais de dois anos? para a obtenção do divórcio direto, não pode a lei ordinária dispensar a comprovação da separação de fato. E foi o que fez a nova lei, embora sem dizê-lo expressamente. Ao deixar de exigir e regulamentar a prova da separação de fato, a Lei n.º 11.441 praticamente a dispensou, tornando-se, por isso, duvidosa a sua constitucionalidade neste aspecto.

Requisitos

Para a celebração da separação ou do divórcio em Cartório, a Lei n.º 11.441/07 requer: a) que não haja filhos menores ou incapazes(34); b) a observância do prazo de um ano de casamento; c) a descrição e a partilha de bens; d) a fixação da pensão alimentícia entre os cônjuges; e) a disposição a respeito do nome dos cônjuges; f) a intervenção de advogado comum ou um advogado para cada parte.

Quanto aos filhos, é bom observar que, embora a lei tenha empregado a disjuntiva ?menores ou incapazes?, o que abrangeria inclusive o filho menor emancipado, parece-nos não se justificar a proibição neste caso. Se o filho, embora menor, foi emancipado, não há impedimento à separação feita em Cartório, pois o objetivo da lei foi proibi-la se houver filhos incapazes. Poder-se-ia questionar a possibilidade de fraude no caso, emancipando-se o menor apenas para ter acesso à realização da escritura, mas cremos ser essa hipótese bastante improvável e, caso ocorrida, daria margem à anulação pela fraude(35).

Há quem pretenda que seria possível a separação em Cartório mesmo tendo o casal filhos incapazes, desde que o acordo não verse a respeito de direitos indisponíveis. Segundo esse entendimento, o casal poderia fazer a escritura solucionando apenas as questões envolvendo o próprio casal (partilha, alimentos entre eles, uso do nome etc.) e resolver a questão relativa aos filhos em processo judicial, antes ou depois da escritura(36). Mas, data venia, tal entendimento é absolutamente inaceitável. A lei é extremamente clara ao exigir a inexistência de filhos incapazes. E o fez bem, pois é necessário que se resguarde o interesse destes na separação. Se se permitir a realização da escritura sem a solução dos interesses dos filhos, pode o casal separar-se e jamais resolver judicialmente a questão dos filhos, ficando estes prejudicados. Não se pode acolher o afã novidadeiro de alguns para estender um benefício já bastante questionável a quem está dele expressamente excluído.

Quanto à exigência de advogado, é de se observar, em primeiro lugar, não se justificar tal exigência. Se para a celebração de qualquer outra escritura não há necessidade de intervenção do profissional, por que seria para esta? Confronte-se a celebração de uma compra e venda de um imóvel de valor extremamente alto, com a celebração de uma separação consensual sem nenhum bem a partilhar; por que para esta há necessidade de intervenção de advogado e não para aquela? Poder-se-ia argumentar que seria para resguardar as questões de natureza pessoal relativas à separação. Mas, se assim fosse, seria necessária a intervenção do Ministério Público ou do Judiciário, não de advogado. O advogado é representante das partes, não tendo isenção suficiente para preservar a lisura do procedimento. Parece-nos que se atendeu muito mais aos interesses da classe dos advogados do que propriamente aos interesses das partes(37). Obviamente não se está aqui negando a importância da atuação do advogado na conciliação dos cônjuges, na obtenção do acordo, no esclarecimento dos direitos das partes(38). O que aqui se questiona é apenas a obrigatoriedade de participação do advogado na celebração da escritura. De qualquer forma, sendo um dos cônjuges advogado, nada impede que ele compareça em causa própria, e até representando também o outro cônjuge.

Há quem pretenda não ser possível que um dos cônjuges ausente se faça representar ?pelo mesmo advogado que assiste o outro?(39). Com a devida vênia, ousamos discordar. A uma, porque, segundo nos parece, não é possível a realização da escritura sem a presença dos cônjuges pessoalmente(40). Mas, admitindo-se a escritura nestas condições, não vemos como se possa vedar a representação do cônjuge por seu advogado. Note-se que o advogado comum não ?assiste o outro?, como pretendido, mas assiste a ambas as partes. Por que razão não poderia ele representar seu assistido?

Obviamente não pode um dos cônjuges, na escritura de separação consensual, outorgar procuração ao outro para que este efetive a conversão da separação em divórcio(41). Embora a conversão possa ser feita sem a presença pessoal dos cônjuges, a manifestação de vontade deve ocorrer por ocasião da conversão mesma, não se podendo falar em prévia autorização de um dos cônjuges para que o outro, unilateralmente, exerça tal pretensão.

No caso de separação extrajudicial, a partilha dos bens, segundo nos parece, pode também ficar para fase posterior, assim como poderia se a separação fosse judicial. Embora a lei diga que a escritura deva conter a partilha dos bens, não nos parece que pretendeu a lei alterar a disposição anterior (art. 1.121, § 1.º, do Código de Processo Civil) no sentido de permitir que a partilha seja feita posteriormente(42). Já no caso de divórcio, à semelhança do que entendemos para o caso do divórcio judicial(43), também aqui nos parece não ser possível postergar a partilha, que deve constar necessariamente da escritura.

Da mesma forma, pode perfeitamente haver dispensa de alimentos entre os cônjuges, tanto na separação quanto no divórcio feitos em Cartório.

A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para o registro civil e o registro de imóveis. Diz a lei que a escritura e demais atos notariais serão gratuitos(44) àqueles que se declararem pobres sob as penas da lei. Este é outro ponto frágil da nova lei. Pela nossa experiência profissional sabemos que a grande maioria dos processos de separação e de divórcio são efetivados pela justiça gratuita(45), que o Juiz normalmente concede sem maiores questionamentos. Em Cartório, cremos que a questão se complica, já que os Cartórios são privados; certamente os seus Oficiais não verão com bons olhos o pedido de gratuidade(46) (o que já ocorre em outras hipóteses, como o casamento). Como fazer efetivo o direito à gratuidade exposto na lei? E, por outro lado, como assegurar aos Cartórios a justa remuneração pelos serviços prestados?

Aliás, convém notar que a lei foi, mais uma vez, extremamente simplista ao regular a gratuidade das escrituras. Afora o problema já citado, há também a questão dos honorários advocatícios. A lei exige a presença de advogado para realização da escritura, mas não estipula como se fará tal assistência nos casos de gratuidade. Irá a Defensoria Pública prestar também tal assistência? E nos Estados onde ainda não se conta com a Defensoria Pública estruturada, como ocorre no Paraná? Nota-se, pois, que a questão é mais complexa do que previsto na lei.

Afora os requisitos específicos para a separação ou o divórcio em Cartório, também são exigidos os demais requisitos comuns para cada uma dessas modalidades de dissolução do casamento. No divórcio, por exemplo, exige-se a imediata realização da partilha, não podendo esta ser relegada para fase posterior(47).

Notas:

(32)  CARVALHO, Newton Teixeira de. Op. cit., p. 4.

(33)  CARVALHO, Newton Teixeira de. Op. cit., p. 4.3.4.

(34)  O Projeto de Lei nº. 4.979/01, do Deputado Sílvio Torres, pretendia permitir a separação em Cartório ainda quando houvesse filhos incapazes.

(35)  Ressalte-se que a anulação da escritura se fará sempre por ação ordinária de nulidade de negócio jurídico, nunca pela ação rescisória.

(36)  Neste sentido: FARIAS, Cristiano Chaves de. Op. cit., item 9. Em posição intermediária, DIAS, Maria Berenice (Em debate. In: Boletim IBDFAM. Belo Horizonte, jan.-fev./2007, v. 42, p. 3) entende que seria possível a separação e o divórcio mesmo que existam filhos menores ou incapazes, desde que ?as questões com relação a eles já tenham sido alvo de apreciação judicial?, solução que, segundo nos parece, também não atende à disposição legal, como veremos no texto.

(37)  Neste sentido, observa FONSECA, Rodrigo Dias da In: www.dm.com.br. Acesso em: 27 fev. 2007, p. 2) que ?na tramitação do projeto de lei, no Congresso Nacional, originalmente se previa ser facultativa a assistência de advogado. A intervenção e influência da OAB no processo legislativo foram responsáveis pela alteração da proposta original, de maneira que a nova lei exige a participação do advogado nos casos por ela tratados?.

(38)  Neste sentido: VIEIRA, Cláudia Stein. Em debate. In: Boletim IBDFAM. Belo Horizonte, jan.-fev./2007, v. 42, p. 4.

(39)  GABURRI, Fernando. Primeiros apontamentos sobre separação e divórcio extrajudiciais. In: www.ibdfam.com.br. Acesso em: 24 jan. 2007, p. 2.

(40)  Vide, a propósito, item , infra.

(41)  Este questionamento, sem resposta, foi levantado por GRISARD FILHO, Waldyr. Em debate. In: Boletim IBDFAM. Belo Horizonte, jan.-fev./2007, v. 42, p. 4.

(42)  Em sentido contrário, entendendo que a partilha deva constar necessariamente da escritura: LÔBO, Paulo Luiz Neto. Divórcio e separação consensuais. In: Boletim IBDFAM. Belo Horizonte, jan.-fev./2007, v. 42, p. 5.

(43)  Vide, a propósito, CARVALHO NETO, Inacio de. Op. cit., item 11.5.4, p. 349-352.

(44)  No Estado de São Paulo, o valor normal da escritura, sem partilha de bens, é de R$ 218,49 (duzentos e dezoito reais e quarenta e nove centavos), afora os traslados (uma cópia para cada parte e uma para o registro), cobrados à parte.

(45)  Note-se que a gratuidade não é uma novidade da Lei nº. 11.441/07, como pretendeu ASSAD, Elias Mattar. Divórcio gratuito aos pobres. In: O Estado do Paraná. Caderno Cidades. Curitiba, 21/jan./2007, p. 11.

(46)  A propósito, escreveu ASSAD, Elias Mattar (Op. cit., p. 11): ?Como está para nascer um tabelião ?papai-noel?, vamos aguardar o desenvolvimento do novo instituto na prática, observando para onde rumarão os choramingos e as interpretações. Declarações de pobreza de um lado, de outro, os tabeliães afirmando que funcionários, papéis, materiais de expediente, tintas de impressoras, etc., custam caro e que esse ônus é do Estado e não deles?.

(47)  A propósito desta exigência, do disposto na Súmula 197 do Superior Tribunal de Justiça e do art. 1.581 do novo Código Civil, vide: CARVALHO NETO, Inacio de. Op. cit., item 10.5, p. 322-329.

Inacio de Carvalho Neto é especialista em Direito pela Universidade ParanaenseUnipar. Mestre em Direito Civil pela Universidade Estadual de Maringá -UEM. Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo – USP. Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de Lisboa – Portugal. Professor Titular de Direito Civil nas Faculdades Integradas Curitiba – FIC. Professor de Direito Civil na Escola do Ministério Público e na Escola da Magistratura do Paraná. Promotor de Justiça no Paraná. Autor dos livros (entre outros): Separação e divórcio: teoria e prática, pela ed. Juruá, em 8.ª edição; Abuso do direito, pela ed. Juruá, em 4.ª edição; Responsabilidade civil no direito de família, pela ed. Juruá, em 2.ª edição; Curso de direito civil: teoria geral do direito civil, v. 1, pela ed. Juruá; Direito sucessório do cônjuge e do companheiro, pela ed. Método; e de diversos artigos publicados em diversas revistas jurídicas.

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