Segurança Pública e Estado Democrático de Direito

A ampliação do sentimento coletivo de insegurança e a massificação do fenômeno da anomia, são alguns dos efeitos imediatos da multiplicação da criminalidade organizada e violenta. A cada rebelião carcerária, a cada tragédia divulgada pelos meios de comunicação, repetem-se as mesmas falácias do Governo Federal, prometendo maior rigor no combate ao delito e à violência. As promessas, porém, pela sua natureza e impotência surgem no cenário de desesperança dos brasileiros como cortina de fumaça. O Poder Executivo federal não dispõe de uma Política Criminal e Penitenciária de caráter efetivo e rentável embora, há vinte anos, tenha em seu organograma administrativo o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. O Congresso Nacional, por seu lado, é também carente de uma orientação científica e política para discutir e votar a legislação referente à prevenção e repressão da criminalidade. Persiste, há muitos anos, na prática legiferante a idéia equivocada segundo a qual o aumento da criminalidade deve ser combatido com o endurecimento das penas.

Esse panorama é desolador quando se assiste os debates da Comissão Especial encarregada de avaliar os projetos que tramitam nas Casas do Congresso. Ao acompanhar, durante parte de uma madrugada, os debates da Comissão Especial do Congresso Nacional sobre os projetos de lei que tramitam nas duas Casas a respeito da criminalidade, fiquei impressionado com a dispersão e a improvisação reveladas pela grande maioria dos parlamentares. Assuntos de extraordinário relevo como a segurança coletiva e a liberdade individual eram tratados com intervenções pontuais, sob o pálio de um direito penal do terror, e com a falsa orientação de combater a tragédia da criminalidade com o apelo a uma legislação de pânico. O ritmo galopante das pautas da comissão sacrificou as liberdades de informação e de opinião. Ambas absolutamente necessárias para tratar de um assunto do maior interesse nacional. Sem elas não existe a legitimação popular para as reformas do Código Penal, do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal, apesar do açodamento do presidente da Comissão, o senador Íris Rezende, que anteriormente já havia comandado uma tentativa frustrada de reforma do sistema criminal (1998). Aumentavam-se as penas privativas de liberdade (mais dois, cinco ou dez anos) na especulação e na barganha de um mercado persa. Procurando construir a partir do telhado e com a ligeireza para entregar a casa, cometeram-se muitas erronias, como, por exemplo, a proposta de um tipo especial de crime hediondo: o seqüestro de pessoas no interior de ônibus. Cabe a ironia: por que excluir outros veículos de transporte coletivo? É elementar que dentro ou fora de ônibus o seqüestro já é gravemente punido e será ainda maior a pena pelas graves conseqüências do fato, isto é, o maior número de vítimas. A criminalização e a neocriminalização eram adotadas segundo a flutuação de maiorias ocasionais no seio da própria Comissão e com desprezo aos critérios e princípios jurídicos. Uma elogiável exceção merece registro: o sensível e talentoso deputado Marcos Rolim (PT-RS). Com moderação e firmeza ele procurou desfazer muitos equívocos daquele festival de incongruências e ligeirezas.

É certo que há necessidade de alterações legislativas para atenuar o quadro de dificuldades. A simplificação do inquérito policial, a revitalização da fiança e a adoção de medidas cautelares de restrição pessoal são algumas. Mas não se deve ter como fórmula mágica o endurecimento das penas.

Outro dia ouvimos alguns disparates produzidos por alguns pré-candidatos ao cargo de Presidente da República. Um deles propunha a unificação das polícias Militar e Civil e a transferência de comando para o … Poder Judiciário. Nada mais surrealista!

O fenômeno da falta de segurança é fruto da omissão e incompetência do poder público. Nessa quadra da história da República, a segurança dos cidadãos (como princípio, direito, garantia e valor) vem sendo atacada por uma corrente de malefícios que podem ser comparados às dez pragas do Egito, reveladas no Êxodo, o segundo Livro da Bíblia: as águas tornaram-se sangue, as rãs, os piolhos, as moscas, a peste nos animais, as úlceras e os tumores nos homens e nos animais, o granizo, os gafanhotos, as trevas e a morte dos primogênitos. O cotidiano dos cidadãos mostra os quadros da impotência e do medo causados pelos vícios e erronias do sistema criminal. Independentemente da ordem de apresentação, elas também assumem a conformação de calamidades bíblicas. Aqui e ali existem determinadas afinidades que não podem ser ignoradas, como por exemplo as chacinas na periferia dos grandes centros urbanos (as águas tornam-se em sangue); o sentimento de insegurança (as úlceras e os tumores nos homens e nos animais); a corrupção funcional (os gafanhotos); as organizações criminosas (as rãs que “subirão sobre ti e sobre o teu povo”); a inflação legislativa (as moscas – “a terra foi corrompida desses enxames”); e a marginalização social (as trevas).

Existem graves e intoleráveis males na administração pública, nos meios de comunicação e em setores políticos e sociais que não podem ser desconhecidos ou sonegados ao debate atual. A segurança pública não deve continuar a ser essa Caixa de Pandora de onde, segundo a mitologia, saíram todos os males que inundaram a terra. Eles podem ser apontados: 1.º) a carência de recursos humanos, materiais e tecnológicos das instâncias formais responsáveis pela prevenção e repressão da criminalidade; 2.º) o salário de fome pago aos policiais de um modo geral; 3.º) a falta (de sistemas integrados) de informação e inteligência; 4.º) o confronto de atuações entre a Polícia Militar e a Polícia Civil; 5.º) o discurso político do governo federal que, em lugar de racionalizar os problemas, provoca a inflação legislativa e abusa de recursos demagógicos e ineptos, como esse de transferir audiências de presos do fórum para o interior dos presídios; 6.º) as distorções da investigação criminal que mantém o mumificado inquérito policial dos anos 40, de burocracia tentacular, fonte de corrupção e abusos; 7.º) o desvirtuamento das delegacias de Polícia, esses depósitos infectos de presos culpados e inocentes, sucursais do inferno que procuram transformar o investigador em carcereiro; 8.º) a massificação dos serviços forenses que permite ao juiz condenar, rotineiramente, seres humanos que desconhece e que cria barreiras de acesso ao Judiciário, frustrando a propaganda dos Juizados Especiais; 9.º) a crise dos estabelecimentos penais, com suas rebeliões carcerárias que misturam presos menores e maiores, primários e reincidentes, perigosos ou não; 10.º) a falta de integração entre os agentes do sistema, ou sejam, policiais, promotores, juízes, defensores públicos e servidores penitenciários, os quais somente falam entre si através da frieza dos papéis.

Pelo andar da carruagem do governo federal as coisas tendem a piorar. Um exemplo disso foi a desastrada inauguração dos Centros Integrados de Operações Policiais (Ciops) em Goiás (os telefones emprestados, foram retirados após a cerimônia) quando o presidente Fernando Henrique Cardoso, em momento de baixo-astral e incontinência verbal, acusou advogados e juízes de usarem a lei para libertar bandidos.

Fui honrosamente convidado pelo Ministério Público de meu Estado para lhes falar sobre A Segurança Pública no Estado Democrático de Direito. O tema é fascinante não somente porque se remete aos valores e objetivos das ações destinadas à proteção da comunidade como também invoca os fundamentos da República Federativa do Brasil e, dentre eles, a cidadania e a dignidade da pessoa humana.

Cidadania e dignidade da pessoa humana são dois pilares que sustentam a ponte de passagem do cotidiano das pessoas; caracterizam o traço de união entre a existência dos dias correntes e as expectativas dos dias futuros.

A Constituição Federal declara que a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a defesa da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio (art. 144). Segundo o mesmo dispositivo, a polícia federal, a polícia rodoviária federal, a polícia ferroviária federal, as polícias civis, as polícias militares e os corpos de bombeiros militares são os órgãos competentes para efetivar a obrigação estatal e o direito individual. Um dos parágrafos adiante contém uma proclamação otimista que merece transcrição: “A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades”.

Legem habemus, para se usar da conhecida locução latina. Sim, temos muitas leis; não nos faltam normas jurídicas num país que sofre os males da proliferação legislativa tal como as serpentes da cabeça de Hidra. A Constituição Federal, as cartas estaduais, as leis, os decretos-leis, os decretos, os regulamentos, as resoluções, as portarias, as ordens de serviço, tudo isso e mais alguma coisa, forram as mesas dos administradores e agentes públicos e congestionam o trânsito de normas prometidas para atender uma elementar obrigação do Poder Público: defender a incolumidade das pessoas. Essa incolumidade é tanto física como moral; é tanto material como espiritual. Mas, serão boas ou más essas leis? Se são boas, por que não estão enfrentando a maioria dos problemas da violência e da criminalidade ou, pelo menos, atenuando o sentimento de insegurança? E se são más, por que não são modificadas ou substituídas?

Montesquieu já deplorava “esse número infinito de coisas que um legislador ordena ou proíbe, tornando os povos mais infelizes e nada mais razoáveis”. E muitos outros, antes e depois dele, também lamentaram o fenômeno, a exemplo de Lao Tseu, Le Tao to King: “Quanto mais interdições e proibições houver,/ mais o povo empobrece,/ mais se possuirão armas cortantes,/ mais a desordem se alastra, /mais se multiplicam os regulamentos,/ mais florescem os ladrões e os bandidos”. A citação foi colhida num trabalho da professora e criminóloga francesa, Mireille Delmas-Marty (A criação das leis e sua recepção pela sociedade).

A severidade das leis criminais também não tem sido um bom caminho para proporcionar a integridade dos cidadãos. O exemplo mais eloqüente – e dramático – é ofertado com a reportagem de capa da revista Época desta semana, dando conta dos intoleráveis índices de seqüestros em algumas cidades brasileiras, a exemplo de São Paulo (crescimento de 323 %), Rio de Janeiro, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Mato Grosso do Sul e Pará. Felizmente o nosso Estado não consta desse mapa de insegurança. E o seqüestro, como um dos crimes hediondos, é severamente punido, não tendo o seu autor, benefícios como anistia, graça, indulto, fiança e liberdade provisória. A pena de prisão deve ser cumprida, integralmente em regime fechado (penitenciária) e o livramento condicional somente é obtido com o cumprimento de dois terços da pena; se for reincidente específico, não terá direito a tal benefício. Como, então, explicar a multiplicação de tais fatos que dilaceram a vítima, aterrorizam a sua família e inquietam a comunidade? É possível explicar tal paradoxo?

Na matéria já aludida, que tem o sugestivo título “De frente para o medo”, está dito com propriedade que a banalização do seqüestro faz com que ele seja tratado pela maioria dos governos de maneira banal. “A polícia é burocratizada, tem uma estrutura antiga e falta impulso político para dar uma mexida grande”, avalia o criminalista Eduardo Augusto Muylaert Antunes, que foi um competente secretário de Justiça e Segurança de São Paulo.

A lei dá todas as garantias aos cidadãos. Mas quem garante as garantias?

Faltam planos, projetos e realizações materiais no campo da Política Criminal e Penitenciária; faltam recursos humanos e materiais; faltam meios e métodos para orientar um trabalho eficiente de prevenção, repressão e controle da criminalidade; faltam estímulos para as carreiras dos operadores do Direito, com destaque para os famélicos vencimentos de agentes policiais, agentes penitenciários, soldados da Polícia Militar e outros tantos protagonistas da luta diuturna em favor da segurança pública; faltam audiências públicas, com a presença de autoridades e participação de lideranças comunitárias, para debater as questões de segurança; faltam programas que fomentem a autoestima de policiais; faltam projetos a serem desenvolvidos entre a Universidade e as instâncias formais de luta contra o delito (Poder de Polícia, Ministério Público, Magistratura, instituições e estabelecimentos penais); falta ampliar as atribuições das guardas municipais, hoje limitadas à proteção de bens, serviços e instalações do Município; falta, enfim, um modelo democrático e eficiente para que a segurança pública em nosso país possa, efetivamente, ser um dos mais caros bens dos indivíduos e da coletividade.

Já destaquei, linhas acima, na relação das dez pragas do sistema criminal, a falta de integração entre os agentes do sistema (policiais, promotores, juízes, defensores públicos e servidores penitenciários). Pois bem. Essa lacuna pode e deve ser preenchida através de iniciativas como o evento de que hoje estamos participando. Com a promoção do Ministério Público do Paraná, reúnem-se a Fundação Escola do Ministério Público do Paraná, Associação Paranaense do Ministério Público, Escola Superior do Ministério Público da União, Associação dos Juízes Federais do Paraná e a Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Para os objetivos idealísticos desse seminário estão envolvidos advogados, membros do Ministério Público, autoridades de Segurança Pública, especialistas em gestão de políticas públicas, cientistas políticos, magistrados e parlamentares.

Em torno de temas como Segurança Pública e Estado Democrático de Direito, Planos de Segurança Pública, Sociedade, Violência e Cultura Policial, Segurança Pública e Direitos Humanos, Segurança Pública, Controle das Polícias e Projetos Legislativos, o Seminário promete bons resultados. Sem esse trabalho integrado o projeto global para a segurança será frustrado pelas episódicas iniciativas que nada mais fazem senão caracterizar um tipo de publicidade enganosa.

Que constitui crime perante o Código de Defesa do Consumidor.

René Ariel Dotti

é advogado e professor universitário. Palestra de abertura do seminário Segurança Pública – Desafios e Perspectivas, realizada no dia 20 de março de 2002, na PUCPR.
rene.dotti@onda.com.br

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