Samsa, quem diria, virou barata

Ao despertar, na manhã de hoje, depois de uma noite mal dormida, Gregor Samsa achou-se em um ônibus em Curitiba e pagou R$ 1,70. Novo aumento, e ele se considerou, mais uma vez, um monstruoso inseto. Samsa mora em Curitiba há cinco anos. Desde então, a tarifa aumentou em 200 por cento, ou mais, enquanto o seu salário insiste em ser o mesmo. Ele tenta ser racional. Neste período, o salário mínimo, para que tenha alguma coisa como base, não foi reajustado na mesma proporção, o que o leva a considerar que se há alguma coisa estranha, ela afeta mais pessoas.

Ele olha para o lado e vê um homem que ganha salário mínimo. É inevitável que pense: o mínimo está hoje em R$ 213,00 e, para trabalhar, este homem que insiste em ir e voltar de ônibus de sua casa para o trabalho vai gastar por mês algo em torno de R$ 99,00. É inevitável que se pergunte: este sujeito é um gastador? Como é que faz isso com seu salário? Será que em sua família outros se deleitam em passeios de ônibus? E, se o fazem, o que comem?

As empresas de ônibus tem seus argumentos, elas sempre os tem. A Prefeitura, também. Ela sempre os tem. Todo mundo sai ileso nesta história, exceto o trabalhador. Não, Gregor Samsa não atenta contra o exemplar sistema de transporte coletivo de Curitiba, coisa de primeiro mundo, ele não é insolente. Por isso, por respeito, ele não fala mais nesta coisa de a tarifa do ônibus ser hoje R$ 1,70. Mesmo porque, isto já é realidade.

Há cinco anos Samsa comprava o litro de leite até por R$ 0,50, o litro de óleo por R$ 1,00 e assim por diante. Ambos tiveram aumento médio de 150 por cento. Os preços como em uma orquestra organizada estavam em certa harmonia, que permitia a Gregor Samsa algo que se chama de precário equilíbrio financeiro. Samsa não é economista, mas percebeu que o custo de vida se deteriorou enquanto neste período o seu salário permaneceu o mesmo.

Se o problema afetasse somente a Gregor Samsa, poder-se-ia falar em mania de perseguição, que ele é meio esquisito e daqui a pouco vai dizer que está se transformando em inseto, quem sabe uma barata. Mas o problema afeta todos os brasileiros, e de maneira mais aguda aos assalariados. Se o problema afetasse apenas Curitiba, poder-se ia dizer que uma metamorfose estranha acontece nesta cidade. Mas esta bizarrice medonha ocorre em todo o Brasil e em todo o País outros Gregor Samsa têm noites maldormidas e a cada aumento acordam com a sensação de terem se transformado em monstruosos insetos.

Todo pesadelo tem um fim. Em toda história ou na realidade. Uma hora, este há de ter. O terrível é enquanto dura. Qualquer Samsa sabe que não é possível, eternamente, os preços subirem numa escala geométrica e o salário grudado numa base irreal para ancorar uma economia que se definha. Vai chegar um ponto em que, neste ritmo, se tornará impossível ao trabalhador, seja ele Gregor Samsa, ou qualquer outro, pagar a tarifa de ônibus para ir trabalhar e para voltar para casa.

Há o medo de que a inflação volte. Mal sabem que a inflação é hoje, certamente, a mais bem alimentada das criaturas brasileiras. Não, Gregor Samsa, que acorda com a sensação de que está virando barata.

Edilson Pereira

(edilsonpereira@pron.com.br) é editor em O Estado.

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