Edson Luiz Peters

Reforma do Código Florestal só enxerga a árvore

O acalorado debate na Câmara dos Deputados, no dia 6 de julho, ocasião em que a Comissão Especial da Casa aprovou o projeto que prevê mudanças no Código Florestal, serviu como uma prévia para o clima que deve pesar sobre o assunto até sua votação final no plenário da Câmara. Fora da casa de leis, a polêmica se repete. Ruralistas defendem as mudanças alegando que o Código barra o desenvolvimento do agronegócio e lança milhares de proprietários na clandestinidade, enquanto ambientalistas afirmam que o projeto anistia desmatadores, legitima a devastação e abre espaço para derrubar as florestas que sobraram.

O assunto ressurge no quadro das polêmicas nacionais quando Carlos Minc assume o Ministério do Meio Ambiente e resolve acirrar o combate ao desmatamento na Amazônia como resposta à Comunidade Internacional e aos ambientalistas que protestavam. Ao propor o Decreto 6.514/2008, criou punição para o proprietário rural que não averbasse a sua reserva florestal legal no espaço de um ano.

A idéia era fazer uma cobrança mais efetiva. Os proprietários rurais tinham até o final de 2009 para ter suas reservas devidamente averbadas e registradas em cartório, sob pena de multa. Eles se sentiram pressionados e à mercê de serem considerados infratores, já que muitos historicamente não vinham cumprindo a exigência de manter estas reservas. A situação gerou um movimento de rebote dos proprietários rurais, que passaram a pressionar o Congresso Nacional. A partir daí alguns deputados e representantes da classe rural aproveitaram a oportunidade para propor uma reforma casuísta.

O problema é que existem dois extremos: dos produtivistas, que não abrem mão de sua lucratividade e querem buscar o máximo rendimento com menor investimento e, de outro lado, os ambientalistas, que combatem qualquer tipo de aproveitamento econômico em determinadas situações e regiões, que assim parecem pretender estancar o desenvolvimento nacional. Está faltando razoabilidade para os dois lados. Quem produz e tem atividade econômica baseada na agricultura e pecuária, precisa reconhecer a importância da biodiversidade para garantir a produtividade da terra, e pesar isto na balança econômica do futuro.

Por outro lado, alguns setores ambientalistas precisam reconhecer que é importante o desenvolvimento econômico traduzido em avanços sociais. Não podemos nem paralisar a economia e nem transformar tudo em pasto. É possível caminhar com maturidade e equilíbrio para uma postura intermediária que permita, ao mesmo tempo, produzir e preservar.

Para dar um só exemplo: quem tem hoje uma área com mata de araucárias deve ser compensado pela sociedade. Quem preservou merece respeito e uma compensação para continuar preservando. E aquele que desmatou e está produzindo, que não tem mais floresta alguma em sua área, deve compensar quem tem. É uma medida inteligente que permite que quem produz continue produzindo e quem preserva continue preservando. Mas isso deve ser feito com critérios técnicos precisos, sempre dentro de uma mesma bacia hidrográfica. É preciso ter a bacia como uma unidade de gestão ambiental e econômica, onde deve ocorrer a preservação florestal, da água e a produção agropecuária, a partir de critérios técnicos de zoneamento.

Neste sentido já existe uma previsão denominada Servidão Florestal, que é anterior à proposta de mudança do Código e que permite criar Cotas de Reserva Florestal. Uma área rural com cobertura florestal além da obrigação legal permite ao dono dividir tal área em cotas de reserva florestal e colocá-las em uma bolsa florestal, tal como a bolsa de valores. Assim, quem não tem a reserva florestal ou tem menos que o percentual legal pode adquirir estas ações florestais na bolsa.

No meio desta discussão, o Ministério Público, assim como outros setores da sociedade, tem se posicionado sobre o assunto, com “argumentação e não com contaminação ideológica”. Há um falso conflito entre ambientalistas e ruralistas, porque não é possível produzir, sem preservar. E, para preservar, não é preciso deixar de produzir.

Trata-se de uma discussão emocional e de induvidosos propósitos eleitorais num ano de mudanças políticas importantes, com eleições para Presidente da República, Governadores, renovação da Câmara Federal e de 2/3 do Senado.

A discussão inteligente e necessária parece que vai demorar!

Primeiro é relevante perguntar-se e conhecer-se a legislação que temos em vigor para saber o que precisa ser aperfeiçoado. O Código Florestal em vigor, de 1965, é o segundo que temos na História Jurídica do Brasil. E apesar de seus 45 anos é um dos melhores diplomas que o País já aprovou.

Tem o nome de Código Florestal, mas é o diploma que melhor protege a água no Brasil. Assim, o que está por trás do debate de reforma do Código é o futuro de um bem muito precioso: a água. Junto com água a biodiversidade, pois na medida em que perdemos nossa cobertura vegetal, desalojamos a fauna. Esta se olvidando que Código Florestal protege as Áreas de Preservação Permanente, cuja cobertura florestal impede a contaminação da água e erosão do solo, além da estabilidade geológica. As matas ciliares têm papel principalíssimo na conservação dos cursos d’água.

Entretanto, do que até agora se viu é possível algumas observações.

É possível antever um retrocesso para proteção dos recursos ambientai em prejuízo do futuro da Nação e é imperioso que o assunto seja debatido pela sociedade para que esta se posicione e busque uma solução mais amadurecida e tecnicamente adequada. Não é aceitável mais uma reforma de afogadilho no decorrer de mais um processo eleitoral.

A reformulação do Código Florestal em trâmite no Congresso Nacional é uma demonstração eloqüente da visão míope, atrasada e pontual de grande parte dos parlamentares brasileiros a respeito da amplitude e complexidade da questão ambiental.

Isso é incalculável para o futuro. A proposta prevê que pequenas e médias propriedades com até quatro Módulos Fiscais, e este tamanho pode chegar a centenas de hectares, dependendo da região, fiquem dispensadas de manter a Reserva Florestal Legal. É um critério tecnicamente vulnerável, pois há o risco de grandes propriedades, que seriam obrigadas a ter a reserva legal, serem divididas em pequenas e médias para não mais terem esta obrigatoriedade. Por exemplo, um proprietário de uma área de 1 mil hectares que venha a falecer e tenha cinco filhos. Sua terra vai virar cinco propriedades de 200 hectares cada, sem obrigação de manter a reserva. Vamos imaginar isso numa escala regional, nacional, em uma Amazônia, que ainda guarda uma cobertura florestal significativa e mantém um equilíbrio mínimo do clima. Com a proposta, isso poderá ser reduzido sem ferir a lei. Aí está o ponto mais crítico da proposta: por via transversa, com criatividade e má fé ela pode representar uma carta verde para se desmatar mais milhões de hectares no Brasil a médio e longo prazo.

O Código Florestal faz parte de um tripé que tutela juridicamente o meio ambiente no Brasil, que é formado também pela Constituição Brasileira de 1988 e pela Lei da Política Nacional do Meio Ambiente. Se o primeiro for mutilado, da forma como está sendo proposto, este tripé perde o equilíbrio que lhe da efetividade. A proposta reduz à metade a mata ciliar e dispensa da reserva florestal legal milhares de propriedades rurais. E o que é pior: faz isto sem critérios técnicos universamente aceitos.

Ou seja, o efeito prático é a redução, sob o argumento de que milhares de proprietários, pequenos agricultores vão sair da clandestinidade. Isto porque muitos, hoje, plantam arroz em áreas banhadas ou plantam uva no topo da serra, e o topo de morro e terras altas, acima de 1800 metros de altitude, que são consideradas áreas de preservação permanente, deixarão de ser. A mata ciliar, que hoje é de no mínimo 30 metros é reduzida para 15 metros, representando, se a proposta avançar, em perda significativa destas matas que protegem a água, os rios e a biodiversidade.

Não obstante os avanços da ciência e tecnologia que permitem uma compreensão maior da problemática ambiental e das possíveis soluções para as equações sócio-econômicas que permeiam o desenvolvimento sustentável neste novo milênio persiste uma tendência ultrapassada de legislar por partes ou por setores, como se fosse possível desconsiderar as conexões que formam a cadeia da vida.

Como se pode ignorar o papel preponderante das florestas na manutenção do ciclo hidrológico, já apontado por Platão antes da era cristã. No século IV A.C., na Grécia, o filósofo lembrava o papel preponderante das florestas como reguladoras do ciclo da água e defensoras dos solos contra a erosão. Em Roma, Cícero considerava inimigos do Estado aqueles que abatiam as florestas.

Como é possível discutir isoladamente a necessidade maior ou menor de cobertura vegetal sem considerar a crescente necessidade de água (em quantidade e qualidade) para manter a vida humana e as atividades econômicas, a proteção da fauna (lembrando que a fauna mora na flora), a proteção do solo contra a erosão, o papel da mata como filtro solar e atenuante do assoreamento.

Como admitir que o interesse econômico de alguns setores coloque em risco o presente e o futuro de tantas gerações.
É sabido que o clima, a saúde, o ciclo das chuvas e conseqüentemente as atividades agropecuárias são derivadas da cobertura florestal e parece que nada disso é levado em conta, ao contrário, parece que a preservação é o grande entrave da produção. Não há capitalismo ou qualquer outro sistema econômico que resista à escassez de recursos naturais.

Continuamos acreditando que o verdadeiro conflito está entre preservar e produzir e que a lei é capaz de resolver todos os grandes problemas do Brasil, desde a inflação até a corrupção, passando pela violência e alcançando a poluição.

Também se despreza a estrutura fundiária brasileira marcada pela concentração de terras, enquanto muitos proprietários acabaram com pequenas parcelas insustentáveis quer do ponto de vista ambiental, social ou econômico. A culpa é atribuída, mais uma vez, e apenas à legislação ambiental restritiva.

Será que alguma anistia de multas ou a possibilidade de cultivar mais alguns hectares vai resolver a situação econômica de milhares de pequenos e médios produtores rurais pelos séculos do séculos?

Vale perguntar: quais são os verdadeiros problemas e soluções para os proprietários e produtores rurais menores? Quais são os reais obstáculos para o desenvolvimento agrário nacional?

Há solução para este impasse? O assunto ainda precisa ser muito discutido e a sociedade tem este poder, por meio das entidades representativas. Penso que a proposta só será debatida no Congresso no próximo ano. Este tempo contribui para a reflexão e cria oportunidades para todos os segmentos da sociedade se posicionar, o Estado, os Movimentos Sociais, Entidades Rurais, novos Governantes e Legisladores, todos podem refletir e tomar uma decisão adequada. Se há pontos que merecem reforma, é preciso mudar com inteligência e técnica para não fazer mais uma lei de momento, que vai satisfazer eventual parcela da população sem levar em conta o futuro da Nação Brasileira.

Para além da árvore é preciso enxergar a floresta!

Edson Luiz Peters é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná. Doutor em Direito do Estado pela UFPR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. É professor, conferencista e escritor.

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