Reflexos negativos da Lei 10.628/2002 no combate à corrupção no País

A Lei n.º 10.628/2002 alterou o caput do art. 84 do Código de Processo Penal, acrescentando-lhe, também, dois parágrafos, estabelecendo o foro por prerrogativa de função nas ações de responsabilidade pela prática de atos de improbidade administrativa(1).

A Lei Federal mencionada, ampliando o denominado “foro privilegiado”, inclusive para os agentes políticos que deixaram a função pública, está eivada de inarredável inconstitucionalidade.

Primeiramente, porque a legislação infraconstitucional, em nenhum momento, possui legitimidade para ampliar a competência dos órgãos de superposição, ou seja, do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Tais competências, como não se ignora, são constitucionais e, por conseqüência, tão-somente a reforma do Texto Maior permitiria, se desejada, a ampliação dessa prerrogativa. Em outras palavras, a competência deferida ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça, pelo legislador constituinte, é taxativa, fechando-se em numerus clausus. Por consectário, toda e qualquer ampliação ou proposta de alargamento dessa competência deve trilhar caminho próprio, qual seja, o procedimento previsto à Emenda Constitucional (arts. 59, I, e 60, da Constituição Federal).

Em segundo lugar, também há inconstitucionalidade porque o reconhecimento constitucional do foro privilegiado ou por prerrogativa de função, por retratar hipótese excepcional, deve ser interpretado restritivamente(2).

Ademais, a Lei n.º 10.628/2002 violou a Constituição Federal, agora no que toca ao art. 125, § 1.º, ao atribuir competência aos Tribunais de Justiça dos Estados, quando tal matéria deveria ser ventilada no âmbito das Constituições Estaduais, inclusive mediante iniciativa dos próprios Tribunais de Justiça, logicamente, respeitando-se as prerrogativas já existentes (v.g. art. 29, X, da Constituição Federal).

Por outro lado, cabe acrescentar que os atos de improbidade administrativa não possuem natureza penal, conforme claramente delimita o art. 37, § 4.º, da Constituição Federal: “Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”(3).

Destarte, o foro por prerrogativa de função restringe-se, exclusivamente, às hipóteses de crime, não abrangendo, por evidente, os atos de improbidade administrativa.

Para afastar a evidente inconstitucionalidade da Lei n.º 10.628/2002, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP e a Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB ajuizaram ações diretas de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, que foram autuadas, respectivamente, sob os n.º 2.797 e 2.860, sendo distribuídas ao eminente Ministro Sepúlveda Pertence. Ambas as demandas estão tramitando em apenso, tendo sido indeferida a liminar que pleiteava a imediata suspensão dos efeitos da referida Lei Federal(4), encontrando-se os autos já com parecer favorável do Procurador-Geral da República(5), restando o julgamento pela Corte Suprema.

Assim, o art. 84 do Código de Processo Penal continua a vigorar com a redação trazida pela Lei n.º 10.628/2002, não obstante os Tribunais Estaduais venham reconhecendo a sua inconstitucionalidade(6).

A inconstitucionalidade flagrante da Lei n.º 10.628/2002 não se coaduna com o sistema constitucional em vigor, nem tampouco com o propalado fortalecimento dos mecanismos de combate aos atos de corrupção de improbidade administrativa.

Porém, o mais grave são os reflexos processuais que a falta do julgamento do mérito das mencionadas Ações Diretas de Inconstitucionalidade podem provocar, já que, se for mantido o entendimento da liminar proferida pelo Ministro Ilmar Galvão, os milhares de ações em andamento perante o 1.º Grau de Jurisdição – como, por exemplo, nos Estados do Paraná, São Paulo e Rondônia – terão como conseqüência a declaração de nulidade de atos processuais decisórios, a teor do disposto no art. 113, § 2.º, do Código de Processo Civil, o que pode ter conseqüências desastrosas no combate à corrupção, com a nulidade de decisões que concedam medidas de urgência, como a indisponibilidade de bens e o afastamento da função pública pelo agente que tenha praticado ato reputado ímprobo, além de poder tornar sem efeito sentenças eventualmente proferidas. Inúmeros atos processuais poderão ser praticados sem qualquer utilidade prática – inclusive com desnecessárias remessas de autos de 1.ª para 2.ª Segunda Instância e vice-versa -, em detrimento do princípio da economia processual.

Por outro lado, o clima de insegurança jurídica permanece enquanto não houver o julgamento final das Ações Diretas de Inconstitucionalidade, pois, em alguns Estados, observa-se o novo regramento, ao passo que outros continuam utilizando a sistemática anterior.

Destarte, considerando os argumentos explanados, urge a adoção de providências no sentido de ser agilizado o julgamento das ADINs n.º 2.797 e 2.860, em trâmite perante o Egrégio Supremo Tribunal Federal, de modo a ser restabelecida a segurança jurídica, evitando os reflexos processuais mencionados.

Notas

(1) Tendo em vista as modificações da Lei 10.628/2002, o art. 84 do Código de Processo Penal passou a ter a seguinte redação: “Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade. § 1.º. A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública. § 2.º. A ação de improbidade, de que trata a Lei n.º 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1º”.

(2) Nesse sentido, o magistério de Hugo Nigro Mazzilli (Foro privilegiado para autoridades? O Estado do Paraná. Caderno Direito e Justiça, 05/01/2003).

(3) Cfr., a esse respeito, as lúcidas considerações de Fábio Konder Comparato (Competência do Juízo de 1.º Grau. Improbidade Administrativa, 10 Anos da Lei n.º 8429/92. José Adércio Leite Sampaio e outros (org.). Belo Horizonte: Del Rey, 2002, pp. 126-127).

(4) A liminar foi indeferida na ADIN proposta pela CONAMP, ao passo que, na outra ADIN, ajuizada pela AMB, não houve liminar, tendo sido apenas determinado o apensamento à ADIN anterior.

(5) O parecer da Procuradoria-Geral da República é pelo conhecimento da ação direta de inconstitucionalidade e, no mérito, pela sua procedência em parte, para declarar a inconstitucionalidade do § 1.º, do art. 84, do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei n.º 10.628, de 24 de dezembro de 2002, bem como da expressão “observado o disposto do § 1.º”, constante do § 2.º, in fine, também acrescido pela mesma lei ao referido art. 84, salvo se o Supremo Tribunal Federal novamente reexaminar sua posição quanto ao cancelamento da Súmula 394, nos termos do item 51 acima; e, ainda, para declarar a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, conferindo interpretação conforme à Constituição ao mencionado § 2.º, para considerá-lo aplicável apenas quando se trate de hipóteses de atos de improbidade administrativa configuradores de crimes de responsabilidade.

(6) Cfr., por exemplo, a orientação dos Órgãos Especiais dos Tribunais de Justiça dos Estados do Paraná (HC n.º 137.187-1, de Curitiba, Órgão Especial, Rel. Des. Leonardo Lustosa) e São Paulo (Ação penal pública n.º 065.288.0/9, de São Paulo, Órgão Especial, Rel. Des. Paulo Shintate), bem como do Tribunal Pleno do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia (Argüição de inconstitucionalidade n.º 03.002943-0, Tribunal Pleno, Rel. Des. Eurico Montenegro).

Maria Tereza Uille Gomes

é procuradora-geral de Justiça.

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