Quorum de julgamento nos tribunais

1. O Tribunal de Justiça do Paraná editou a Resolução n.° 13, de 25 de maio de 2007, alterando a redação do artigo 50 do Regimento Interno, disciplinando a composição de quorum para julgamento de recursos nas respectivas Câmaras, prescrevendo: ?não havendo número legal para o julgamento, a substituição será feita por desembargador de outra Câmara ou por juiz substituto em segundo grau, de preferência da mesma especialização, mediante convocação do presidente da Câmara, que constará, para efeito de publicidade, da ata de sessão de julgamento.?.

A aplicação da regra regimental, contudo, está a revelar intolerável anomalia no sistema que domina a convocação de substitutos, comprometendo, sensivelmente, a garantia constitucional que orienta o princípio do juiz natural, no momento em que elimina o sorteio aleatório que todos os textos de lei procuram preservar.

2. Embora recentes reformas legislativas tenham estabelecido regras processuais de dianteira, inserindo o direito brasileiro ao lado dos países mais avançados do ocidente, também é certo que a direção do processo não pode comprometer princípios maiores que orientam o programa democrático do Estado de Direito, entre os quais o do juiz natural, exigindo a presença de autoridade competente para o julgamento. A rigor, antes mesmo de promulgada a Carta de 1988, a doutrina já se orientava no sentido de que a atuação jurisdicional somente poderia ser desenvolvida desde que a ação – compreendendo o direito de pedir ou exigir do Estado a tutela jurídica estivesse em conformidade com o devido processo legal. O princípio, hoje consagrado no artigo 5.º, LIV, da Constituição (?ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal?), deita raízes no direito anglo-saxônico, como verbi gratia, o artigo V, da Emenda XIV à Constituição americana, que disciplinou o due process of law, enunciando: ?ninguém será … privado da vida, liberdade, ou bens, sem o processo legal.?. A garantia recepcionada pelo legislador constitucional brasileiro, procura enfatizar que o exercício da função jurisdicional pelo Estado deve observar as formas e procedimentos previstos em lei e o juiz somente prestará jurisdição em conformidade com o regramento legal previamente estabelecido. Vide, a propósito, as lições de Ernane Fidélis dos Santos (Introdução ao Direito Processual Civil Brasileiro, Forense, 1978, p. 278) e Humberto Theodoro Junior (A garantia fundamental do devido processo legal e o exercício do poder de cautela no direito processual civil, artigo publicado na Revista dos Tribunais, vol. 665, p. 15).

Portanto, toda intervenção do Estado-jurisdição realizada à margem da disciplina legal que o legislador elegeu para averiguar e definir a pretensão que irá atingir a esfera de direito da pessoa, não pode merecer o timbre da eficácia, pois como advertem Rogério Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci: ?a garantia constitucional do devido processo legal deve ser uma realidade em todo o desenrolar do processo judicial, de sorte que ninguém seja privado de seus direitos, a não ser que no procedimento em que este se materializa se verifiquem todas as formalidades e exigências em lei previstas.? (Constituição de 1988 e Processo, Saraiva, 1989, p. 17)

Analisando com inegável propriedade a garantia constitucional do juiz natural, o Ministro Felix Fischer, teve oportunidade de acentuar a inteligência do comando impresso na Carta Fundamental. Em voto proferido no Superior Tribunal de Justiça (HC 12403-SE), cuja leitura é facilitada através do site www.stj.gov.br, realiza profundo estudo do princípio do juiz natural, enfocando, inclusive, o direito alemão, a exemplo da transcrição do magistério de Eberhard Schmidt (Los Fundamentos Teóricos y Constitucionais Del Derecho Procesal Penal), arrematando: ?O Princípio do Juiz Natural, constitucionalmente previsto no art. 5.º, incisos XXXVII ?não haverá juízo ou tribunal de exceção? e LIII ?ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente? visa garantir o julgamento isento, a aplicação do direito sem a ingerência de terceiros. Protege tanto a autonomia e independência do juiz quanto o julgamento justo ao homem. É uma fundamental garantia do cidadão…. Seguindo esses preceitos, a distribuição há de seguir um critério isento previsto em normas. A distribuição, a princípio, deve ser aleatória, ressalvando os casos de dependência ou compensação, previstos em lei. Assim, a designação de um juiz sem a observância do critério legal de distribuição fere frontalmente o princípio do juiz natural, eivando de nulidade todos os atos praticados após a referida designação.?

Prosseguindo, o ministro Felix Fischer reproduz manifestação doutrinária nacional para arrematar: ?De forma mais ampla, entretanto, Greco entende que tal ?regra significa que as regras de determinação de competência devem ser instituídas previamente aos fatos e de maneira geral e abstrata de modo a impedir a interferência autoritária externa. Não se admite a escolha do magistrado para determinado caso, nem a exclusão ou afastamento do magistrado competente. Quando ocorrer determinado fato, as regras de competência já apontam o juízo adequado, utilizando-se, até, o sistema aleatório do sorteio (distribuição) para que não haja interferência na escolha.?

3. Como se constata, a regra inserta no artigo 50, do Regimento Interno do TJPR, é totalmente desnecessária, isto porque, cuidando-se de composição de quorum de julgamento colegiado, somente mediante lei federal a questão deverá ser tratada. Justamente por isso, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LC 35/79) estabelece disciplina específica, enunciando no artigo 117: ?Para compor o ?quorum? de julgamento, o magistrado, nos casos de ausência ou impedimento eventual, será substituído por outro da mesma Câmara ou Turma, na ordem de antiguidade, ou, se impossível, de outra, de preferência da mesma Seção especializada, na forma prevista no regimento interno. Na ausência de critérios objetivos, a convocação far-se-á mediante sorteio público, realizado pelo presidente da Câmara, Turma ou Seção especializada.?.

Aliás, com o objetivo de eliminar ilegalidades envolvendo designações realizadas em alguns tribunais do País, o Conselho Nacional de Justiça resolveu disciplinar a questão de forma bastante clara, editando a Resolução n.º 17, de 19 de junho de 2006, definindo ?parâmetros a serem observados na escolha de magistrados para substituição dos membros dos Tribunais?, prescrevendo: ?A substituição dos membros dos Tribunais será realizada…com adoção de critérios objetivos que assegurem a impessoalidade da escolha.?

Conseqüentemente, não pode o presidente da Câmara convocar juiz de direito substituto de 2.º grau para compor o quorum, tendo em estima a necessidade, conforme exigência da lei federal, de serem obedecidos critérios objetivos, mediante a designação de Desembargador de outra Câmara da mesma especialização. A convocação pura e simples, à margem do sorteio aleatório, de juiz de direito substituto de 2.º grau, não traduz critério eleito pelo legislador, daí ocorrer nulidade do julgamento ante a ilegalidade na composição do quorum.

Walter Borges Carneiro é advogado em Curitiba, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Paraná.

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