Processualidade Ambiental

Os princípios gerais do direito servem não só ao julgador, mas, particularmente, também ao legislador. Na verdade, os princípios devem ser utilizados pelo legislador como uma espécie de ?programa de ação?, isto é, devem informar as opções políticas a serem transformadas em leis, aqui, processuais, conforme dizia Eduardo J. Couture(1), para quem, ?o que, em primeiro lugar, se apresenta ao legislador não é a tarefa de redigir leis, mas a de formular princípios?, quando, não, tem-se que os próprios princípios especificamente processuais também são revelados nas leis processuais. Entretanto é importante que se faça a distinção diga-se, nem sempre clara, na prática processual brasileira entre princípios processuais e leis processuais, conforme advertência de Eduardo J. Couture(2). Pois, ?o interprete freqüentemente desliza de maneira quase imperceptível para a atividade própria da integração? segundo Ada Pellegrini Grinover(3), para quem nas operações de integração, tanto é possível a utilização de regras jurídicas aplicáveis a hipóteses semelhantes, quanto a utilização de princípios.

Portanto, ainda que se admita a utilização do método analógico para se alcançar certa efetividade das regras jurídico-ambientais e, aqui, em especial, as processuais penais ambientais, que possibilitem a concreção de responsabilização penal, seja da pessoa física, seja da pessoa jurídica, necessariamente, impõe-se antes do mais a observância dos princípios que orientam o regime democrático brasileiro. Isto é, para que seja legitimamente permitida a aplicação de regras jurídicas processuais penais para responsabilização penal ambiental, requer-se a observância dos princípios que não só orientam a interpretação das regras jurídicas ambientais e, aqui, mais de perto o princípio da prevenção/precaução , mas, principalmente, todos aqueles que limitam a intervenção estatal repressivo-punitiva.

Bem por isso, a análise dos princípios aplicáveis não se restringe aos da esfera especificamente processual como, por exemplo, o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório, a justa causa, etc. pois, também, deve ser realizada acerca dos princípios que possuem cunho fundamental, vale dizer, daqueles que se constituem em garantias constitucionais(4). A identificação do dano ambiental se opera no mero desenvolvimento de atividades e comportamentos presumidamente ofensivos ao meio ambiente, constituindo-se, assim, o direito penal ambiental e o direito processual penal ambiental nas instâncias assecuratórias, por excelência, do eventual prejuízo que o direito deveria ser capaz de reparar, mas, que, agora, deve preventivamente impedir. Por mais que o meio ambiente se constitua num direito fundamental e, também, por isso, constitucional, merecedor mesmo de proteção integral, tem-se que o Sistema de Justiça Penal não pode estipular a qualquer preço que toda reivindicação penalizante seja considerada legítima e, assim, incontinentemente satisfeita.

Através do advento da Lei Federal sob n.º 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, busca-se impor ao Sistema de Justiça Penal brasileiro a correção de todas as falácias(5) e fracassos funcionais de um Estado que se pretende de ?bem-estar social?, quando, não, da incapacidade de identificação e atendimento dos direitos mais comezinhos à dignidade da pessoa humana, como o é, por exemplo, o meio ambiente saudável. Nas palavras de Charles Melman(6), exige-se indevidamente do Poder Judiciário a capacidade para ?corrigir todas as insatisfações que podem encontrar expressão no nosso meio social?. Mas, agora, exige-se mais do Sistema de Justiça Penal senão, do próprio Poder Judiciário como um todo, isto é, exige-se a capacidade de prevenir o prejuízo e oferecer precaução ao risco, enquanto expedientes eficazes de proteção ambiental. As eventuais lacunas (silêncios legislativos) e antinomias da lei processual ou não, inolvidavelmente, devem ser superadas por interpretações que atendam aos princípios inerentes a todo o ordenamento jurídico, estabelecendo-se, dessa maneira, integração sistêmica entre as regras jurídicas penais, processuais penais e ambientais, segundo os fundamentos e princípios (programas de ação) do Estado Democrático (Constitucional(7)) de Direito.

Enfim, o direito penal ambiental e o processual penal ambiental, talvez, traduzidos na Lei Federal sob n.º 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 ainda que através dos inúmeros ?silêncios? propositais ou não do legislador não podem ser interpretados simplesmente a partir das regras jurídicas que os constituem, impondo-se, pois, as suas (in)formações, orientações e (de)limitações através de princípios que significativamente oferecem ao regime democrático o próprio sentido de democracia, de liberdade, de respeito aos direitos mais comezinhos da personalidade humana, ainda, que, expressados no desenvolvimento de atividades operacionalizadas por empresas, pessoas jurídicas que para, além disso, também marcaram como continuam marcando uma faceta da dimensão humanitária.

A processualidade ambiental deve ser constituída, assim, na espacialidade pública(8) adequada para apuração de responsabilidade administrativa, civil e penal, então, instrumentalizada não só por regras processuais e procedimentais específicas, mas, sobremodo, pela integração sistêmica dos princípios que (in)formam, orientam e (de)limitam as instâncias administrativa, civil e penal, ainda, que com ênfase ao princípio da prevenção/precaução, particularmente, próprio a esfera ambiental. A construção integrativa de uma tal espacialidade pública importa, aqui, não só para a responsabilização penal da pessoa jurídica, mas, também, para que possam ser estabelecidos caminhos processuais que assegurem as condições necessárias inclusive, em especializada instância jurisdicional(9) à resolução judicial das questões atinentes ao Direito Ambiental sejam elas penais, processuais penais ou não.

Notas

(1)     COUTURE, Eduardo J. Interpretação das leis processuais. Tradução de Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano. 4.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 38 e ss. De acordo com o autor, o ?legislador dosa esses princípios, mas não pode contrariar (…) Os princípios processuais, entretanto, por sua vez, são revelados nas leis processuais?.

(2)     COUTURE, Eduardo J. Op. cit.

(3)     GRINOVER, Ada Pellegrini. Aspectos processuais da responsabilidade penal da pessoa jurídica. São Paulo: Revista de Direito Ambiental Vol. 35, Ano 9, jul./set. de 2004, p. 09-25. Para a autora, a analogia é uma metodologia interpretativa que se utiliza ?de regra jurídica relativa a hipótese semelhante?, enquanto que a utilização dos princípios necessariamente transcende àqueles ?decorrentes do próprio ordenamento jurídico?.

(4)     GRINOVER, Ada Pellegrini. Op. cit. Como bem ressalta a autora, ?as garantias constitucionais do processo aplicam-se inquestionavelmente ao intentado em face da pessoa jurídica, como normas supra-legais de incidência geral. (…) garantias de um justo processo, segundo uma visão publicista que dá relevância ao interesse geral na justiça da decisão?.

(5)     CADEMARTORI, Sérgio U. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre; Livraria do Advogado, 1999, p. 166 e ss.

(6)     MELMAN, Charles. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003, p. 106 e ss. Segundo o autor, o ?direito me parece, então, evoluir para o que seria agora, a mesmo título que a medicina dita de conforto, um direito ?de conforto??.

(7)     CADEMARTORI, Sérgio U. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

(8)     ARENDT, Hannah. A condição humana. 10.ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.

(9)     Exemplo disto, é a criação da Vara Federal Ambiental, da Subseção Judiciária de Curitiba, na Seção Judiciária do Paraná, ainda que, concorrentemente, tenha competência jurisdicional ?remanescente sobre as demais matérias que não estejam vinculadas a uma Vara Federal ou aos Juizados Especiais Federais?, nos termos da Resolução sob n.º 35, de 05 de abril de 2005, do egrégio Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, motivo pelo qual restou denominada como Vara Federal Ambiental, Agrária e Residual.

Mário Luiz Ramidoff é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná; mestre (CPGD-UFSC) e doutorando em Direito (PPGD-UFPR); professor das Faculdades
Integradas Curitiba. ramidoff@pr.gov.br

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