Processo penal e tortura

O tema eleito para esta aula magna pode parecer sensacionalista ao ouvido de alguns presentes, principalmente daqueles que pretendo encontrar como interlocutores deste discurso, isto é, dos alunos que iniciam neste momento sua caminhada pelas aragens jurídicas.

Aliás, é para eles dirigida esta fala estruturada não como um grande quadro didático-pedagógico, mas como um convite para pensar sobre as mazelas que tanto preocupam os que fazem do Direito seu instrumento de trabalho e transformação do mundo, sina que muito breve lhes arrebatará.

Sem dúvida alguma, esta discussão sobre a tortura infligida no decorrer do processo penal pode soar para muitos como uma ladainha sem sentido em tempos de democracia ou uma cantilena entoada para relembrar os sofrimentos de um passado distante em que o nosso país vivia sob o jugo de uma ditadura militar.

Entretanto, uma rápida mirada nas práticas corriqueiras das delegacias de polícia e dos fóruns criminais faz perceber que este ainda é um debate necessário na disciplina do Direito Processual Penal e tal como evidenciam as novas tendências da legislação brasileira a tortura é um tema que seguirá no centro das atenções por muito tempo.

A propósito, uma verificação diária dos periódicos deste país permite constatar a atualidade do assunto aqui retratado, já que não são poucas as notícias de violência física empreendida pelas autoridades policiais durante as investigações criminais. Lembram-se do caso do chinês Chan Kim Chang, que foi torturado no presídio Ary Franco no Rio de Janeiro, após ter sido detido pela polícia federal no dia 25.08.2003 por tentar embarcar para o exterior com US$ 30.000 não declarados à Receita Federal, ou do caso dos trabalhadores sem-terra de Ortigueira, que em 1999 foram espancados por policiais encapuzados.

Além disso, é preciso desde logo ressaltar que a tortura não é um tratamento exclusivo dos calabouços policiais, na medida em que também adentra a porta dos aveludados gabinetes de fóruns e tribunais. Por óbvio, nesses locais a violência não atinge diretamente os corpos, mas se concentra nas mentes dos imputados acossados incessantemente pelo espiral de perguntas que tem o único intuito de confundi-los, pressioná-los. Trata-se esta de uma tortura miudinha, que pouco a pouco consome e viola as almas dos acusados.

Em suma, se fosse preciso enumerar todos os casos e descrever todos os gêneros de tortura perpetrada no decorrer de processos destinados à apuração de crimes no Brasil, o tempo preestabelecido para esta aula não seria suficiente à conclusão de tal intento.

Não por outro motivo, tentar compreender porque a tortura faz parte do dia-a-dia do processo penal brasileiro impõe-se como uma tarefa irremediável àqueles que de alguma maneira participam de seu desenrolar e exige um estudo sério e comprometido com a modificação destas práticas que fazem da persecução dos delitos um espetáculo que lembra muito os autos medievais da Inquisição.

Veja-se que toda essa explicação procura retirar o tom escandaloso do título que apresenta esta aula e ao mesmo tempo jogá-los numa reflexão que inevitavelmente os instigará por todo o Curso de Direito e se estenderá por toda a sua vida profissional, cujas encruzilhadas uma hora ou outra os confrontará com esta problemática.

Neste momento, certamente a primeira pergunta que deve estar martelando suas mentes é: Como as leis que disciplinam o processo penal neste país permitem ou abrem espaço para a prática da tortura pelos sujeitos encarregados de conduzir a apuração dos crimes?

Note-se que para encontrar respostas a este questionamento é preciso deixar-se conduzir pelas trilhas de um retrospecto histórico apto a desenhar algumas imagens do específico contexto sócio-político em que foram concebidas as atuais regras regulamentadoras do processo penal brasileiro.

De imediato, é possível afirmar que o arcabouço deste processo foi forjado em plena ditadura getulista pelo Código de Processo Penal de 1941 e traz em seus contornos visíveis nuanças da legislação italiana de inspiração fascista.

Ora, o governo de Getúlio Vargas, sob o pretexto de promover a integração nacional e acabar com a desordem desencadeada pela luta das oligarquias e pelas disputas partidárias, trouxe a lume essa legislação cujos mecanismos foram arquitetados para perseguir, torturar e forçar ao exílio intelectuais e políticos de esquerda, bem como alguns liberais dissidentes de suas políticas centralizadoras.(1)

Além disso, constata-se que numa tentativa de criar os instrumentos para efetivação da Carta Constitucional que outorgou após um golpe de Estado, o ?presidente gaúcho? foi buscar no chamado Código Rocco elementos necessários à construção deste sistema processual destinado à eliminação de seus opositores.

Aliás, o contemporâneo processualista Franco Cordero comenta que Alfredo Rocco e Vincenzo Manzini elaboraram o Código italiano de 1931 guiados pela velha lógica inquisitória do Código Napoleônico, sem dúvida alguma a única capaz de afastar definitivamente a sombra liberal que se fazia presente no texto anterior(2) e ameaçava os planos do regime fascista.

Veja-se que o Código Napoleônico, adotado por quase toda Europa continental, desde sua entrada em vigor no ano de 1811, foi responsável pela criação de um processo que sob uma máscara acusatória escondia a verdadeira essência inquisitória herdada do velho regime.(3)

Chamado por muitos de processo misto, o processo napoleônico em nada se aproximava de um modelo marcado na mesma medida por características inquisitórias e acusatórias, ao contrário sempre fez prevalecer sua essência inquisitória e utilizou alguns elementos acusatórios apenas para ocultá-la.

Aliás, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho justifica que apesar dos conhecidos sistemas processuais não existirem mais em sua forma pura, ou seja, nos moldes do acusatório inglês(4) e do inquisitório medieval(5), não se pode conceber um sistema propriamente misto porque em sua essência há sempre a predominância de um deles, ainda que as características secundárias de ambos se mesclem.(6)

Complementa o processualista brasileiro, que tal conclusão se infere quando os sistemas processuais são diferenciados pelo critério da gestão da prova, que os classifica como essencialmente inquisitórios, quando cabe ao juiz carrear as provas ao processo, e essencialmente acusatórios, quando esta tarefa se torna incumbência das partes.(7)

Veja-se que diante dessas constatações históricas e taxionômicas é inevitável reconhecer que o atual sistema processual penal brasileiro não é misto(8) e nem acusatório(9) como querem alguns, mas essencialmente inquisitório na medida em que estruturado nas bases do Código Rocco e, reflexamente, influenciado pelo Código Napoleônico.(10)

É verdade que o Brasil já teve em vigor um sistema processual penal acusatório, isto porque D. Pedro I, ao participar da elaboração do primeiro Código de Processo Penal genuinamente brasileiro(11), não se deixou guiar pelo modelo imperial francês já em vigor, ao revés, fiou-se naquele delineado pela legislação revolucionária(12), mais especificamente, pelo Decreto 16-29 de setembro de 1791(13), que imprimiu no processo franco as formas inglesas.(14)

Contudo, sabe-se que este Código não vigorou por muito tempo sem reformas, pois a insegurança interna trazida pela renúncia do Imperador levou à sua revogação e, conseqüentemente, à estruturação em seu lugar de um sistema policialesco e repressor(15), que só bem mais tarde seria substituído em parte por outro modelo.

Vê-se, portanto, que a adoção de um ou de outro sistema processual numa dada sociedade decorre do arranjo estratégico de suas relações de força, que se apropriam do arcabouço jurídico para que certos grupos ou indivíduos exerçam poder.

Em razão disso, é possível afirmar que o sistema processual penal brasileiro foi inicialmente estruturado para perseguir aqueles que protestavam contra o centralizador governo getulista, no entanto sua perpetuação em tempos de globalização neoliberal ocorre porque tem se mostrado útil aos que exercem poder e para a própria sobrevivência precisam conter a grande massa de excluídos produzida pela nova ordem mercadológica.

Ora, identificados esses discursos que engendraram a construção do sistema inquisitório no Brasil, bem como os que permitem a sua manutenção nos dias atuais, ainda resta uma pergunta: Como este processo inquisitório admite a prática da tortura?

De acordo com o exposto, no chamado sistema processual penal inquisitório cabe ao juiz gestionar a produção probatória, isto é, recai sobre ele a tarefa de determinar quais serão as provas produzidas ao longo do processo.

Note-se que num processo como este o papel das partes é quase inexistente e suas alegações só ganham respaldo probatório se o juiz entendê-las pertinentes. Noutros termos, esta estrutura permite que o juiz se torne ?senhor do processo? e conduza a produção das provas de acordo com suas convicções.

Alliás, no processo inquisitório habitualmente ocorre o fenômeno que Franco Cordero chamou de primado das hipóteses sobre os fatos(16), ou seja, não raro o juiz ao tomar conhecimento dos fatos na primeira leitura da peça acusatória forma em sua mente uma versão dos acontecimentos e utiliza a instrução probatória apenas para confirmá-la. Nas palavras de Jacinto Coutinho, o sistema processual inquisitório concede ao julgador ?a escolha da premissa maior, razão pela qual pode decidir antes e, depois, buscar, quiçá obsessivamente a prova necessária para justificar a decisão.?(17)

Por óbvio, nesta paranóica produção probatória, a confissão do acusado constitui a prova mais importante ou a única capaz de respaldar por completo a versão condenatória engendrada pelo juiz logo nos primeiros movimentos da máquina judiciária, já a tortura se torna o método mais eficiente para arrancar do acusado tal verdade construída pelo próprio julgador. Assim, a submissão do imputado aos tormentos do corpo e da alma permite encurtar o caminho probatório e obter rapidamente da própria boca do acusado a confirmação de sua tese.(18)

Note-se que este processo de essência inquisitória afasta a constitucionalmente consagrada presunção de inocência ou de não culpabilidade, cuja concepção mais atual prescreve que os sujeitos não serão considerados culpados pela prática de uma infração penal até o trânsito em julgado da sentença condenatória.

Ademais, a concretização de outros direitos que dela decorrem também resta prejudicada, tal como o direito ao silêncio que apesar de previsto expressamente no próprio Código de Processo Penal não ganha efetividade nas cotidianas práticas judiciárias. Isto porque essa faculdade que tem o acusado de silenciar sobre as acusações que lhe são feitas é completamente incompatível com o atual sistema processual em que a confissão figura como rainha das provas e por este motivo faz prevalecer a máxima de quem cala consente.

Também não se pode deslembrar o importante papel dos meios de comunicação na sustentação deste processo penal arbitrário e opressor, uma vez que em flagrante desrespeito à garantia da não culpabilidade costumam utilizar o sensacionalismo e a comoção popular para condenar os cidadãos suspeitos antes mesmo de proferidas as sentenças jurisdicionais definitivas.

Neste sentido, é possível concluir que de alguma maneira todo o corpo social contribui para a manutenção deste sistema responsável pela perseguição dos que não conseguiram se incluir na nova ordem mercadológica neoliberal.

Evidentemente, esta afirmação não deve reverberar como um comentário fatalista, mas deve funcionar como uma provocação para que se tenha coragem de questionar: Existe alguma atitude que possa perverter este sistema nefasto, existe alguma estratégia que possa pôr fim neste processo inquisitório em que se pratica a tortura para extorquir dos acusados a confissão?

Sem dúvida alguma são muitas as veredas que conduzem à resposta desta pergunta, isto é, são muitos os caminhos que podem ser escolhidos para mudar o sistema processual brasileiro, mas é possível já no início das andanças indicar que todos eles passam impreterivelmente pela assunção de uma atitude crítica.

Isto significa que a transformação do processo penal brasileiro exige antes de mais nada que os sujeitos de alguma maneira envolvidos em suas práticas perguntem sobre os propósitos que as sustentam ou sobre os discursos que as permeiam.

Nesta linha, Michel Foucault pondera que a assunção de uma atitude crítica é o primeiro passo para modificar as práticas de poder que buscam submeter e assujeitar a todos, noutros termos, quer dizer que a perversão do velho sistema depende de uma decisão ao mesmo tempo pessoal e coletiva dos indivíduos de não se deixar governar, de não aceitar a dociliação imposta por certos jogos de poder.

Aliás, acrescentava o filósofo francês que para se rebelar contra uma forma de poder não basta denunciar a violência por ela imposta, é imprescindível perguntar sobre a racionalidade que constitui suas práticas e mantém todos assujeitados, inclusive dizia ele que esta é a única forma de impedir que outros grupos ou pessoas continuem por meio dela governar a todos.(19)     

Ressalte-se que esta atitude crítica mencionada por Michel Foucault começa de modo indubitável a ser assumida nesta aula, com estas reflexões sobre o sistema processual penal brasileiro e deve se consolidar ao longo do Curso que ora se inicia e cujos estudos deverão se estender por toda a vida profissional.

Enfim, é preciso ressaltar que esta rápida aula foi justamente proferida com intuito de provocá-los desde logo a dar este primeiro passo na direção de uma atitude crítica que decerto no futuro será responsável pela desarticulação das práticas opressoras que atualmente fazem do processo penal um instrumento útil à contenção da grande massa de excluídos.

Notas

(1) ?O Estado Novo não representou um corte radical com o passado. Muitas de suas instituições e práticas vinham tomando forma no período 1930-1937. Mas a partir de novembro de 1937, elas se integraram e ganharam coerência no âmbito do novo regime. A inclinação centralizadora revelada desde os primeiros meses após a Revolução de 1930, realizou-se plenamente. Os Estados passaram a ser governados por interventores, nomeados pelo governo central e escolhidos segundo diferentes critérios. Parentes de Vargas, militares, receberam a designação. De um modo geral, porém, nos maiores Estados algum setor da oligarquia regional foi contemplado. (FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2002, p. 201).

(2) trad. da autora: ?Aprovado em 19 de outubro de 1930, n.º 1399, o novo código vige desde 1.º de julho seguinte: No plano técnico vale alguma coisa a mais que seu predecessor. Alfredo Rocco e Vincenzo Manzini desenvolveram sobretudo em lógica quadrada o assunto criptoinquisitório do velho texto, enterrando impiedosamente aquele semigarantismo; não falta uma rude moralidade na operação; eis o que significa ?processo misto?, para ser coerente.? (CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: Utet, p. 100).

(3) Nas palavras de Franco Cordero, o processo reformado napoleônico implicou verdadeiro retorno ao sistema inquisitório estruturado pelas Ordenações Criminais de 1670: ?E assim, em 17 de novembro de 1808, nasce o processo dito misto, monstro de duas cabeças: nos labirintos escuros da instrução reina Luís XIV, segue uma cena pública disputada e com a participação popular.? Ou seja, segundo ele, tratava-se de um processo cuja instrução era secreta e o julgamento público, não passava de um verdadeiro golpe de cena para ocultar a inquisitoriedade do sistema. [trad. da autora] (CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: Utet, p. 73).

(4) O sistema acusatório surgiu na Inglaterra, em 1166, quando Henrique II, criou no Tribunal de Assise, o procedimento do Trial by jury, por meio do qual um órgão colegiado composto de membros da comunidade e organizado por sheriff (juiz real itinerante) decidia inicialmente as questões de terra e mais tarde todas as demais. Com este procedimento, o rei inglês submeteu todos aos seus tribunais, inclusive os seus opositores barões, e ganhou conseqüentemente o apoio popular. V. CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: Utet, p. 41 e ss. e GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Trad.: A. M. Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. Lisboa: Gulbenkian, 1988, p. 210 e ss.

(5) O sistema inquisitório foi estruturado pela Igreja Católica por volta de 1215 para punir os hereges, isto é, os que contrariavam suas escrituras, uma vez que seu número havia aumentado consideravelmente desde que a racionalidade aristotélica penetrara nos feudos e colocara em risco o domínio dos bispos. V. CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: Utet, p. 43 e ss.

(6) COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Coord.: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

(7) ?Salvo os menos avisados, todos sustentam que não temos, hoje, sistemas puros, na forma clássica como foram estruturados. Se assim o é, vigora sempre sistemas mistos, dos quais, não poucas vezes, tem-se uma visão equivocada (ou deturpada), justo porque, na sua inteireza, acaba recepcionado como um terceiro sistema, o que não é verdadeiro. O dito sistema misto, reformado ou napoleônico é a conjugação dos outros dois, mas não tem um princípio unificador próprio, sendo certo que ou é essencialmente inquisitório (como nosso), com algo (características secundárias) proveniente do sistema acusatório, ou é essencialmente acusatório, com alguns elementos característicos (novamente secundários) recolhidos do sistema inquisitório. Por isto, só formalmente podermos considerá-lo como um terceiro sistema, mantendo viva, sempre, a noção referente a seu princípio unificador, até porque está aqui, quiçá, o ponto de partida da alienação que se verifica no operador do direito, mormente o processual, descompromissando-o diante de um atuar que o sistema está a exigir ou, pior, não o imunizando contra os vícios gerados por ele.? (COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Coord.: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 17-18).

(8) V. TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do Direito Processual Penal: ação, jurisdição e processo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 176 e ss..

(9) V. MARQUES, José Frederico. Estudos de direito processual penal. Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 24 e ss.

(10) ?De qualquer forma, é preciso estar atento para o fato de que o Código Napoleônico informou a grande maioria das legislações da Europa continental e, de conseqüência, aquelas as quais estas influenciaram, entre outras a nossa hoje em vigor.? (COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Coord.: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 40).

(11) ?A história do Código de Processo Criminal de Primeira Instância inicia-se no governo de D. Pedro I. Na sessão de 20 de maio de 1829, por ordem do soberano e cuja mensagem foi subscrita pelo Ministro da Justiça, Lúcio Soares Teixeira Gouveia, o projeto foi apresentado à Câmara, tendo esta, incontinenti, designado uma comissão integrada pelos deputados Medeiros, Cruz Ferreira e Araújo Bastos para examiná-lo. A comissão, em 15 de junho do mesmo ano, ofereceu seu parecer, favorável ao projeto.(…) No mês de julho de 1831, Manuel Alves Branco apresentou, na qualidade de relator, o seu parecer, e, em setembro desse mesmo ano, o projeto foi remetido ao Senado, que dele se ocupou por mais de um ano. Em 20 de outubro de 1832, recebeu o autógrafo da Assembléia e no dia 29 de novembro do mesmo ano, foi promulgado pela Regência Permanente Trina, cujos componentes eram Francisco de Lima e Silva, José da Costa Carvalho e João Bráulio Muniz, – que tinham sido eleitos em 3 de junho de 1831 e referendada a lei, por Honório Hermeto Carneiro Leão.? (PIERANGELLI, José Henrique. Processo penal: evolução histórica e fontes legislativas. Bauru: Jalovi, 1983, p. 97 e 98).

(12) ?O nosso legislador de 1832 ficou, portanto, num meio termo entre o procedimento acusatório, então vigente na Inglaterra, e o misto, adotado pela França, (…) mas induvidosamente, o nosso Código era muito mais liberal, pois no modelo francês o acusado era colocado em uma situação de inferioridade em relação ao acusador oficial e o juiz exercitava uma atividade de produção de provas, valendo-se para esse fim, até mesmo da tortura. Além disso, nesta legislação, ?o processo era escrito, secreto e não contraditório?, o que não ocorria com o nosso.? (PIERANGELLI, José Henrique. Processo penal: evolução histórica e fontes legislativas. São Paulo: Jalovi, 1983, p. 103).

(13) ?Ribadito dalla constitution 3 settembre 1791 e attuato dal decreto 16-29 settembre, questo canone importa technique inglesi (qualcuno vi postula poco verosimili ascendenze francesi eclissate negli ultimi tre secoli).? (CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: Utet, p. 61.) [trad. da autora: Previsto pela constituição de 3 de setembro de 1791 e concretizado pelo decreto 16-29 de setembro, este cânone importa técnicas inglesas (qualquer um supõe pouco verossímel ascendências francesas eclipsadas nos últimos três séculos).].

(14) ?A desrazão, como sói acontecer, atribuiu à frouxidão do Código de Processo Criminal de Primeira Instância, de 1832, a culpa pelo que se estava passando, sob o fundamento de se incentivar a impunidade. O argumento, à toda evidência, era falacioso. O dito Código era um modelo exemplar, dentro do possível à época, mesmo porque se estava a seguir a legislação francesa pré-napoleônica centrada no Decreto de 16-29 de setembro de 1791 (ainda do período da Assembléia), infinitamente melhor que o Código francês de 1808, fruto de artimanhas legislativas para eternizar o ancien régime, tudo patrocinado por Jean-Jacques-Régis de Cambacérès, mais tarde arquichanceler do Império. Da histeria quase coletiva (patrocinada pela oligarquia fundiária), nasce no Brasil a Reforma de 1841, com a famosa Lei nº 261, de 03 de dezembro. Ela foi, por si só, um exemplo primoroso de ?terror legal?, abrindo as portas para arbitrariedades sem limites. Em quase trinta anos de vigência é sempre bom não esquecer nada mudou quanto à criminalidade. Foi a Guerra do Paraguai (1864-1870) que apontou o país para outra direção, colocando-o refém dos ingleses. A guerra, não obstante, é fator imperioso de união e tão-só ao seu final que se conseguiu a sonhada mudança, resultado de uma solução de compromisso entre os Liberais (que sempre nela insistiram) e os Conservadores, tudo movido por uma exigência do próprio Imperador Dom Pedro II.? (COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O projeto de justiça criminal do novo governo brasileiro. Site: http//:www.direitosfundamentais.com.br, acesso em 10.02.2005, às 14h).

(15) Este sistema foi estruturado pela Lei nº 261/1841, que tratou de reformar o Código de Processo Criminal de Primeira Instância vigente desde 1832. As reformas foram amplamente contestadas pelos liberais que as tomavam como legitimadoras do abuso do poder e da tirania dos governos. V. PIERANGELLI, José Henrique. Processo penal: evolução histórica e fontes legislativas. São Paulo: Jalovi, 1983, p. 135 e ss.

(16) CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: Utet, 1986, p. 51.

(17) COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. (Coord. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho) Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 25.

(18) Tal pode ser constatado na narrativa de Dalmo de Abreu Dallari sobre o processo dos untores de Milão: ?Guglielmo Piazza foi preso e se iniciou o processo criminal, cujo objetivo era só confirmar aquilo que já se tinha como certo: ele era um dos untores. Brutalmente torturado na presença de um juiz, pendurado pelos braços até que, por seu próprio peso, ocorresse o deslocamento à altura dos ombros, Piazza tentou negar sua culpa, mas por diversas vezes, quando baixaram a corda que o sustinha, esperando que ele confessasse, sua obstinação em afirmar-se inocente irritou o juiz. Este determinou que o suspendessem novamente, até que resolvesse confessar. Não suportando mais as dores, o infeliz acusado confessou, mas aí se iniciou nova sessão de tortura, para que ele dissesse quem lhe tinha fornecido o ungüento pestífero.? (DALLARI, Dalmo de Abreu. Duzentos anos de condenação da tortura. Prefácio da obra: VERRI, Pietro. Observações sobre a tortura. Trad.: Frederico Carotti. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. XIII).

(19) [trad. da autora] ?Em conseqüência, os que resistem ou se rebelam contra uma forma de poder não deveriam se contentar em denunciar a violência ou criticar uma instituição. Não é suficiente seguir o processo utilizado pela razão geral. O que deve ser colocado em questão é a forma de racionalidade presente nela. A crítica do poder exercido sobre os doentes mentais ou os loucos não deveria se limitar às instituição psiquiátricas; os que contestam o poder de punir não deveriam se contentar em denunciar as prisões como instituições totais. A questão é: como são racionalizadas as relações de poder? Colocá-la é a única forma de evitar que outras instituições, como os mesmos objetivos e os mesmos efeitos tomem o seu lugar.? (FOUCAULT, Michel. ?Omnes et singulatim?: vers une critique de la raisons politique. Dits et Écrits. Dits et Ècrits. Org.: Daniel Defert e François Ewald. Paris: Gallimard, 1994, v. IV, p. 161).

Clara Maria Roman Borges é advogada, mestre e doutora em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Professora de Direito Processual penal na Unibrasil.

Processo penal e tortura – Aula magna proferida aos calouros do Curso de Direito da Unibrasil, em 16/8/2005.

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