Por que raios se ensina literatura na escola?

Cleverson Ribas Carneiro (UTP)

No cotidiano escolar, muitas vezes, a falta de reflexão sobre o papel da literatura propicia o corte, pragmático, mas nunca oficialmente assumido, da literatura na sala de aula. Quando a literatura não é simplesmente abandonada, o professor pode constatar as terríveis barreiras que a separam de seus alunos e então surge a pergunta fatal: "por que raios devo ensinar isso?". Uma dúvida algumas vezes reforçada pelo desconforto do próprio professor em relação à literatura, porque ele também não gosta ou "curte" muito isso aí.

É desanimador. Sempre a mesma dificuldade (do aluno e também do professor) de compreender as complexas relações lingüísticas e estéticas do texto, a mesma má-vontade com a literatura em sala de aula, a mesma resistência. Em meio a todos os problemas ainda há a necessidade de encontrar, selecionar e reproduzir textos, conjugar possíveis soluções didáticas com os programas de ensino e convencer famílias que não querem ou não podem gastar com livros.

Como se não bastasse, ainda há as cobranças indiretas, feitas por uma sociedade atônita frente aos resultados da educação; os jornais, as revistas, a TV e o rádio, todos afirmam que os brasileiros não sabem ler, não gostam de livros, não compram livros, detestam literatura, alguns mais apocalípticos pregam o risco à soberania, o fim da sociedade brasileira, a aproximação de uma hecatombe cultural causada pela indolência e incapacidade nacional de gostar de livros ou literatura. Em meio ao temor geral, o professor, sozinho, isolado e fadado a sentir-se o mais completo incompetente, um desvirtuado, um zero, um nada.

Não. Esse texto não se pretende mais uma voz apocalíptica, também não quer apenas descrever as mazelas da escola brasileira. Esse texto se coloca algumas perguntas: por que há a disciplina de literatura na escola? Por que tentar ensinar literatura na escola? Por que se ensina literatura da forma como é ensinada? São questões complexas. Vamos tentar analisar apenas a primeira nesse momento, as outras ficam aí para incomodar.

Quando os professores enfrentam a resistência dos alunos em relação à literatura fica difícil acreditar que já houve muito sofrimento e luta por causa de livros. Em todos os tempos, é inumerável a quantidade de escritores, críticos e leitores, que em todo o mundo morreram, foram presos, torturados, perseguidos e exilados. Em relação apenas ao Brasil, pode-se contar todo o período colonial como uma era de repressão aos poucos escritores e leitores, situação que pouco mudou com a Proclamação da Independência; o período imperial, se não foi violento contra os autores também não deixou de ser mesquinho com literatos desafetos ao imperador. Com a República veio a censura que endureceu nos anos da Ditadura Vargas e durante a Ditadura Militar. Ao longo da história brasileira, escritores e leitores foram calados à força, presos, mortos ou exilados, livros foram queimados, editoras fechadas. Paradoxalmente, a literatura jamais deixou de ser reconhecida como um conteúdo escolar fundamental. Os mesmos governos que prenderam escritores promoveram eventos de literatura, financiaram livros, exigiram a disciplina nas escolas e mantiveram ou criaram departamentos de literatura nas universidades. Parece que a necessidade humana de contar e ouvir histórias sempre foi maior e mais forte que qualquer regime autoritário.

As perseguições afetaram a produção escrita, mas é importante ressaltar que a literatura não existe apenas em formato impresso. Na verdade, ela se consolidou como fenômeno cultural ao longo de milhares de anos apenas como tradição oral. A história da literatura impressa é apenas uma gota no oceano da história da humanidade. É claro que a etapa gráfica representa uma mudança radical do estatuto literário, mas a literatura não perdeu a característica fundamental de ser o meio de expressão dos velhos contadores de histórias, cujo papel na preservação da vida dos povos é bastante conhecido, inclusive pelos tiranos.

Em princípio, a literatura não existe para explicar, mas para questionar, o que não se faz em função do conteúdo (os enredos, as historinhas, as máximas), mas do todo estético que envolve muito mais linguagem que ação, em outras palavras, a literatura realiza sua função quando atinge um mínimo de complexidade estética por meio da linguagem artisticamente trabalhada. A investigação das formas mais complexas de arte (aquelas de linguagem mais elaborada) poderia esclarecer e aprofundar aspectos importantes da humanidade. Isso explica porque inúmeros pensadores desenvolveram investigações complexas sobre o ser tendo a literatura como objeto de análise.

A escritora e filósofa inglesa Iris Murdoch viu na contemplação artística e da natureza e no estudo de línguas estrangeiras formas concretas de nos aproximarmos do conceito de bem. A grande arte (e podemos pensar aqui nos maiores romances e poemas de todos os tempos) seria o espaço privilegiado para a reflexão sobre o que é o bem. O esforço individual de contemplação e compreensão das formas elevadas da arte seria fundamental para a constituição de um ser ético, mais voltado às questões humanas, e apto a compreender que a imperfeição e o inacabamento fazem parte da nossa realidade. Assim, o sujeito que consegue atingir, depois de grande esforço pessoal, novos níveis de compreensão de sua realidade, seria alguém mais capaz de participar positivamente de seu meio social.

Talvez tenhamos aqui razões suficientes para defender a existência da literatura como disciplina escolar: ela está prevista na grade de horários porque é um caminho potencial de reflexão sobre ética. Mas apenas potencial, pois para exercer esse papel de fato a literatura não pode continuar a ser apenas mais um conteúdo escolar apático, cujo objetivo máximo é dar conta dos espaços de notas nos livros de chamada. Isso nos leva à segunda pergunta… que vai nos incomodar pelo menos até o próximo domingo, quando de novo será posta a educação em pauta.

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