Os contratos de trabalho estão no centro do que deve ser a reforma trabalhista que será enviada ao Congresso no ano que vem pelo governo Michel Temer. E com razão. Empresas e trabalhadores no Brasil estão na situação inusitada de não saberem o real valor do que assinam. Vale um pouco do que está escrito, outro tanto do que está na CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) e muito do que passa na cabeça dos juízes.
Na prática, a pouca segurança jurídica se traduz em uma enxurrada de ações trabalhistas (foram 2,6 milhões no ano passado), decisões judiciais contraditórias e um distanciamento entre a teoria da CLT e a prática de uma economia cada vez mais focada no setor de serviços.
“Se você pensar bem, nenhum contrato de trabalho hoje tem qualquer segurança jurídica. Tudo pode ser alterado na Justiça do Trabalho. E o juiz tem ampla liberdade de dar a sentença que achar correta”, analisa o especialista em trabalho José Márcio Camargo, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e economista da Opus Gestão de Recursos.
Negociado x legislado
No mês passado, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Teori Zavascki concedeu liminar permitindo que os trabalhadores de uma usina de cana-de-açúcar em Pernambuco trocassem o pagamento em dinheiro de horas in itinere por outras vantagens. As horas in itinere são horas extras pelo tempo de deslocamento ao trabalho quando o local onde os serviços são prestados é de difícil acesso, não há transporte público e o empregador fornece o meio de locomoção.
Para compensar o pagamento, Zavascki decidiu monocraticamente que os cortadores de cana poderiam receber cestas básicas, abono anual superior a dois salários mínimos e outros benefícios. Uma semana depois, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) discordou da decisão e definiu que acordo coletivo não poderia abrir mão das horas in itinere. E que as horas extras deveriam ser efetivamente pagas.
É justamente nesse tipo de conflito – entre o que é negociado diretamente entre trabalhador e empregador, e o que diz efetivamente a lei – que está um dos principais pontos de debate da reforma trabalhista. Além disso, há falhas de regulamentação sobre formas de contratação já previstas em lei, como a terceirização e o trabalho temporário, que devem ser revistas. “Precisamos transferir a negociação do contrato para o começo da relação de trabalho. A Justiça deve só verificar se o contrato foi cumprido ou não”, afirma Camargo.
Na prática, a flexibilização da jornada de trabalho ou de outros benefícios já acontece nas negociações entre empresas e sindicatos, mas têm o risco de serem derrubadas na Justiça. “As empresas tentam negociar, mas não conseguem fazer prevalecer o acordado porque a Justiça não reconhece. Vivemos em um conflito entre o conservadorismo da Justiça e a necessidade de inovação do mundo real”, diz o economista Hélio Zylberstajn, professor da Universidade de São Paulo (USP).
Guinada
Decisões recentes mostram que o STF começou a mudar de direção ao dar mais força para o que foi acordado entre empresas e trabalhadores do que para a legislação. Ministro da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, Marcos Pereira, disse que as decisões devem “encorajar” propostas nesse sentido
Caso BESC
Antes de ser privatizado, o Banco do Estado de Santa Catarina (BESC) firmou um acordo coletivo cuja uma das cláusulas afirmava que o empregado que aderisse ao plano de demissão receberia indenização e estaria impedido de obter qualquer diferença em processo judicial trabalhista. A questão chegou ao TST que, em votação apertada, decidiu que a cláusula de quitação era nula. O banco conseguiu reverter a decisão no STF.
Jornada de 12 horas
Por unanimidade o STF validou a constitucionalidade da Lei 11.901/2009, que estabeleceu jornada de 12 horas diárias de trabalho para bombeiros civis. Os ministros entenderam que a jornada, com 36 horas de descanso, conforme estabelecido na norma, é válida e não fere os princípios constitucionais de direito à saúde do trabalhador.
CLT penaliza mais os pequenos empresários
O juiz do trabalho Marlos Melek, da 1ª Vara de Trabalho de Araucária e Campo Largo, defende a ideia de que a CLT cria desigualdades no mercado de trabalho e pune especialmente os micro e pequenos empresários, segmento responsável por cerca de 80% dos empregos no país.
“A CLT é rígida, inflexível e extremamente desigual. Ela obriga o pequeno empreendedor a pagar R$ 9 mil caso queira e precise recorrer de uma decisão na primeira instância. E um grande banco ou empresa paga esses mesmos R$ 9 mil. Muitas vezes, para um pequeno empresário, isso representa a folha completa de pagamento”, diz. Esse valor representa os custos do depósito recursal, pagamento obrigatório para os empregadores quando querem recorrer de uma decisão judicial definitiva.
Autor do livro Trabalhista! E agora? – Onde as empresas mais erram, lançado neste ano, Melek tem uma posição pouco ortodoxa quando o assunto é o papel da Justiça do Trabalho. “Quando vemos um juiz de primeiro grau tomar uma decisão contrariando uma súmula de um tribunal superior, temos uma loteria ao invés da Justiça, um lugar que serve para garantir os contratos. Enquanto um ganha, outro com exatamente o mesmo caso, perde. Isso é inexplicável”, afirma.
Mudança na CLT pode aumentar pressão por reforma sindical
Caso a reforma trabalhista reconheça a autonomia do negociado entre patrões e trabalhadores, o papel dos sindicatos dos trabalhadores pode se modificar, aumentando a pressão para uma reforma sindical. Desde a Constituição de 1988, os sindicatos ganharam o monopólio das negociações coletivas, que para valerem devem ter a participação obrigatória das entidades.
Permitir a negociação de contratos individuais ou coletivos entre empregadores e trabalhadores mais qualificados, acabar com a exclusividade da atuação dividida em regiões e também com a contribuição obrigatória são algumas das determinações que podem ser revistas com o avanço da reforma.
O professor da USP Hélio Zylberstajn concorda que a política sindical também precisa acompanhar a modernização da CLT. “No nosso sistema, o sindicato não é representativo e atua fora da empresa. Todos os conflitos são jogados para fora, para a Justiça”, avalia. Para ele, um sindicato atuando dentro das empresas, nos moldes como acontece nos Estados Unidos, poderia enfraquecer a judicialização das divergências entre patrões e empregados.