Nenhum centavo da herança milionária

Dona Iolanda Corrêa passou parte da vida ouvindo uma dessas notícias que a maioria das pessoas anseia por escutar: que seu pai, João Augustinho Corrêa, tinha direito a receber uma herança milionária de um parente distante. Distante mesmo: morreu em 1873. A mesma história ouviram outras milhares de pessoas. O parente em questão, o comendador Domingo Faustino Corrêa, tem herdeiros, ou supostos herdeiros, que se distribuem pelo mundo todo, mas principalmente no Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. O curioso é que nenhum deles conseguiu ganhar um centavo.

Devido a um testamento muito complexo, desde a morte de Corrêa – que não tinha filhos -, esses milhares de herdeiros ingressaram com processos nas Justiças desses países atrás de dinheiro. Mas até mesmo para provar parentesco com o comendador a história conspira contra: ninguém sabe exatamente quem foi essa figura. Alguns historiadores acreditam que ele nasceu em Portugal, mas o mais provável é que tenha sido mesmo no Brasil. Segundo um artigo publicado na revista da Justiça gaúcha, ele fez fortuna explorando minas de ouro e pedras preciosas com mão-de-obra escrava e com isso adquiriu enormes extensões de terra. O título de comendador recebeu de Pedro II.

O que se sabe ao certo é que o processo do inventário da herança do comendador é um dos mais famosos, senão o mais famoso, que tramitou em foros brasileiros. O inventário deu entrada na Justiça do Rio Grande do Sul em 27 de junho de 1874 e tramitou em juízo por 107 anos, gerando uma verdadeira corrida atrás do ?ouro? deixado pelo inventariado. Em 1984 a Justiça deu o caso por encerrado e, ao menos no Brasil, já que nos outros países a pendenga continua, ninguém mais poderá se candidatar aos milhões do comendador, que foram parar no Tesouro Nacional.

Sonho impossível

Mas isso não impede que pessoas como dona Iolanda ainda sonhem com a riqueza. ?Assisti uma reportagem no Fantástico sobre os herdeiros que estão querendo reabrir o caso e lembrei que também tinha direito?, diz a senhora de 70 anos à reportagem. De sua casa humilde em Paranaguá e de posse de diversos documentos que comprovariam o parentesco do pai com o parente rico, ela contou uma história tão fantástica quanto a do próprio comendador.

?Meu pai sempre soube que tinha direito à herança, e atrás de alguém que pudesse ajudá-lo, sempre viajou de um lado para o outro?, conta. Mas a herança, continua, parecia ter um quê de maldita. Um dos irmãos de dona Iolanda teria enlouquecido devido à busca do pai pela riqueza, a qual já havia consumido todos os seus bens, tentando matá-lo. ?Ele quase morreu por causa disso e meu irmão escondeu os papéis?.

Somente no fim da vida, já estabelecido em Paranaguá, seu João conseguiu reaver os documentos, os quais enviou a um advogado em Curitiba, pouco antes de morrer, aos 104 anos. ?Isso era 1981. Depois que meu pai morreu, o caso ficou esquecido?, lembra Iolanda. Mas assistindo à referida reportagem, lembrou-se do caso. ?Ligamos para o advogado e ele nos informou que não há mais nada que possa ser feito, porque o caso está encerrado?, relata Anice de Abreu Costa, filha de dona Iolanda, que se empenha em tentar conseguir reaver a herança.

Caso encerrado

O advogado se chama José Francisco Cunico e ainda advoga em Curitiba, mas a reportagem não conseguiu entrar em contato com ele. De qualquer maneira, a especialista em História do Rio Grande do Sul, Virgilina E. Gularte S. Fidelis de Palma, explica que o caso foi definitivamente encerrado em 1984. ?E não é verdade que ninguém recebeu a herança. Alguns dos herdeiros da mulher do comendador, Leonor Maria Corrêa, receberam alguma coisa?, explica. Já para o advogado especializado na área testamental, Rogério Zebreus Marins, é improvável que algum suposto herdeiro do comendador venha a receber algum dinheiro. ?Essa história até já virou lenda. É até impossível levantar de forma clara a fortuna que ele possuía?, avalia.

Grupos de pessoas nos países vizinhos ainda brigam na Justiça para conseguir parte da herança. ?Mas mesmo por lá acho complicado alguém ganhar alguma coisa. Isso parece mais coisa de advogado enrolando o cliente?, diz Marins. Mesmo assim, dona Iolanda ainda tem esperança de reaver um dinheiro que ninguém nunca recebeu. ?Se era de direito do meu pai, acho que é justo que a gente receba esse dinheiro?, desabafa.

Mudança no testamento da mulher causou celeuma

Segundo o artigo publicado pela especialista Virgilina E. Gularte S. Fidelis de Palma na revista Ajuris, da Justiça gaúcha, o embrião do problema foi o testamento da mulher do comendador, que foi alterado depois da morte dela deixando de fora seus parentes diretos. Já o testamento do comendador, embora tenha um perfil filantrópico, é muito caprichoso no que se refere aos legados.

Com exceção de uma légua e meia de campo que deixa às crias (filhos dele com as escravas), o comendador distribuiu sua fortuna para amigos. E ainda dispôs prazo de vencimento das propriedades que ficaram arrendadas, sobre a administração dos bens que ficariam às ?crias? e até sobre eventuais legados que deveriam, após sua morte, serem adquiridos pelo inventariante e repassados para seus amigos.

?Declaro, por último, para evitar dúvidas futuras, que a administração dos bens legados (legados às crias) durará até a extinção da quarta geração dos legatários, isto é, os bisnetos, quando cessará o usufructo do campo dos Canudos e se devolverá a meus herdeiros ou legítimos sucessores?, diz o testamento do comendador. Foi quando a mídia descobriu esse fato, na década de 1970, que a corrida ao ouro do comendador Faustino começou, pipocando herdeiros por todo o mundo. (DD)

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